SOLVE ET COAGULA – A OPERAÇÃO ALQUÍMICA REALIZADA PELA REVOLUÇÃO CONCILIAR

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Fonte: Courrier de Rome nº 660, janeiro de 2023 — Tradução: Dominus Est

Este texto é uma continuação do post OS 60 ANOS DO CONCÍLIO

Em alquimia, a Grande Obra é a realização da pedra filosofal, a famosa pedra capaz de transmutar os metais, curar infalivelmente os males do corpo e trazer a imortalidade. Na origem da teoria que afirma a existência de tal pedra nós encontramos uma tradição segundo a qual os diversos metais estariam, no seio da terra, em lenta maturação para um dia chegar ao estado metálico ideal, ou seja, do ouro. A Grande Obra é a aceleração dessa maturação por meio do uso, como catalisador, do agente ativo dessa evolução. A operação alquímica da Grande Obra comporta, por conseguinte, duas etapas principais: primeiro isolar esse princípio de transmutação, separando-o de todos os demais corpos aos quais está misturado e que impedem sua ação (solvere); em seguida, utilizá-lo como agente ativo de evolução, associando-o de uma maneira nova a todos os demais corpos dos quais ele fora anteriormente isolado (coagulare).

Oportunidade de perspectiva de leitura?

A expressão utilizada para designar esse procedimento dos alquimistas ganhou fama, especialmente porque a alquimia é uma ciência oculta e, enquanto tal, por sua correspondência com as outras ciências e outras práticas que são abrangidas pelo mesmo gênero de ocultismo. É assim que a maçonaria retomou por conta própria essa fórmula que caracteriza a partir de então seu próprio modo de proceder: “aplainar o terreno antes de construir”[1]. Esse método de ação maçônica foi perfeitamente analisado por Mons. Delassus em seu livro A Conjuração Anticristã[2]. A divisão dos capítulos do livro mostra-o por si só: a maçonaria atém-se primeiramente a corromper (é esse o sentido da palavra latina solvere) as tradições e as ideias antes de reconstruir uma nova ordem social, porém reutilizando os elementos que compunham a ordem antiga e que se encontram a partir de então desarticulados (é o sentido da palavra latina coagulare). É o que o velho Aristóteles já chamava de “desarmonizar e rearmonizar”.

Esse plano maçônico é uma realidade devidamente atestada em seu plano geral por numerosos trabalhos sérios, dos quais Mons. Delassus reuniu sua substância, e que foram continuados desde então e cujas principais conclusões mantêm ainda sua atualidade[3] na medida em que foram retomadas e desenvolvidas nas análises da questão do globalismo[4]. Dito isso, por que esse plano não poderia, hoje, no contexto pós-Vaticano II — e mais particularmente no contexto do pontificado do Papa Francisco — servir de fio condutor para o católico que se manteve fiel às promessas de seu batismo e está preocupado em aprender a exata natureza da mudança de rumo dos acontecimentos no interior da Igreja? Com efeito, já desde dez anos atrás quando o Papa Francisco aceitou sua eleição para o Soberano Pontificado, parece cada vez mais claramente que essa mudança de rumo é nova não somente em relação ao que a Igreja conhecia antes do Vaticano II, mas também em relação à evolução seguida desde João XXIII até Bento XVI. É preciso forçosamente reconhecer que os dez anos do pontificado de Francisco pouco se parecem com os anos precedentes aos quais estávamos habituados a uma certa continuidade na ruptura — ou mais exatamente na dissolução do patrimônio sagrado da Santa Igreja: operação cuja continuação parece a ponto de confundir-se com aquela que os alquimistas nomearam usando a palavra latina solvere. Atualmente, e isso nunca deixa de assombrar os mais diferentes observadores da atualidade na Igreja, de qualquer obediência que seja, parece muito que a histórica data da quarta-feira, 13 de março de 2013, inaugurou um verdadeiro desvio: um ponto de não-retorno. Ou ainda como que uma nova ruptura nessa continuidade da ruptura.

A ideia – formidável na sedução que não pode deixar de exercer sobre uma mente ansiosa por compreender o verdadeiro significado deste pontificado de Francisco – surge então por si mesma. ¿Se a evolução dos dez últimos anos não se parece mais com aquela dos anos anteriores, que tinha como objetivo o famoso solvere herdado da Grande Obra de alquimia, ou seja, uma dissolução, não seria simplesmente porque o Papa Francisco está no processo de trazer a Igreja para a próxima etapa deste plano de inspiração maçônica: a etapa do coagulare, onde se trata precisamente de construir outra coisa, mas não sobre as ruínas da Tradição, e sim a partir de elementos a partir de então dispersos dessa Tradição, reutilizando-os para dar-lhes uma configuração radicalmente nova? Tal ideia poderia encontrar sua verificação à luz dos fatos que marcam o pontificado do Papa Francisco? Aqui não é diferente, pois para compreender é preciso comparar: assim vemos em qual medida a diferença que coloca o pontificado de Francisco à parte de seus predecessores poderia corresponder àquela diferença que distingue as duas etapas da Grande Obra, o solve e o coagula.

A continuidade na ruptura, de Paulo VI a Bento XVI

Como os predecessores de Francisco, de Paulo VI a Bento XVI, procederam nessa operação de solvere? O que eles fizeram exatamente para dissolver, ou desorganizar, a Tradição da Igreja? Eles fizeram isso isolando-a, para colocar em evidência e erigir em princípio dogmático-pastoral o postulado imanentista[5] da dignidade ontológica da pessoa humana, com seu fundamento, que é o fato de que a pessoa humana foi criada “à imagem de Deus”[6] e que ela possui enquanto tal um “germe divino”[7] ou “uma dignidade quase divina”[8]. É ao proclamar esse postulado que os Papas de imediato após o Concílio, Paulo VI e João Paulo II, literalmente dissolveram e desarticularam a Tradição da Igreja, abrindo assim o caminho para Francisco, e colocando-o de antemão em posse de um catalisador de uma nova ordem eclesial cuja destinação foi ser colocada a serviço da nova ordem mundial de inspiração maçônica. Bento XVI se inscreve ainda nessa primeira etapa do solvere na medida em que ele fornece a justificativa teórica dessa dissolução realizada por seus predecessores e lhes dá um álibi, especulativamente pensado e refletido, de uma continuidade.

Esse princípio imanentista da pessoa humana — que é uma das variantes, ou formulações possíveis do personalismo — é absolutamente radical, visto que ele controla[9] os três grandes eixos da desarticulação da Tradição da Igreja: a liberdade religiosa, o ecumenismo e a democratização da constituição da Igreja (habitualmente qualificada de “colegialidade”, mas cuja natureza profunda vai muito além da simples atribuição do poder supremo ao Colégio dos bispos). E observemos bem, porque isso importa, em que consiste precisamente a operação realizada por Paulo VI e João Paulo II e da qual devemos a Bento XVI a justificação crítica. Com efeito, seria muito simples conceber essa operação como o equivalente a um “aplainamento de terreno”, assim como se pôde verificar a respeito da Revolução Francesa de 1789[10]. Essa operação consiste antes em desarticular (ou desorganizar) as partes integrantes (ou elementos constitutivos) da Tradição, e não suprimi-los. Esses elementos (os dogmas e o catecismo, os sacramentos e a liturgia, as leis da Igreja e seu Código de direito canônico, a constituição hierárquica da Igreja) permanecem aparentemente os mesmos. Mas eles são desarticulados porque eles não estão mais conectados entre si pelo mesmo princípio, que era até então o princípio do bem comum da tripla unidade de fé, culto e governo; fé, culto e governo esses conhecidos e aceitos na dependência da autoridade do Deus revelador. Esse princípio é relegado ao segundo plano e um outro princípio novo aparece, que é isolado para ser mais bem evidenciado no discurso habitual dos homens da Igreja: o princípio personalista e imanentista da dignidade ontológica da pessoa humana. Os mesmos elementos da Tradição não estão mais unificados na unidade do triplo vínculo de fé, culto e governo. Eles estão assim desarticulados, enquanto que um outro princípio de articulação vem à tona.

João Paulo II não cessa de pregar essa versão imanentista do personalismo. Encontramos sua expressão acabada em sua primeira Encíclica Redemptor hominis, de 4 de março de 1979, no nº 13: “O II Concílio do Vaticano, em diversas passagens dos seus documentos, deixou bem expressa esta fundamental solicitude da Igreja, a fim de que «a vida no mundo seja mais conforme com a dignidade sublime de homem» (Gaudium et spes, nº 91), em todos os seus aspectos, e por tornar essa vida «cada vez mais humana» (Ibidem, nº 38). Esta é a solicitude do próprio Cristo, o Bom Pastor de todos os homens. Em nome de uma tal solicitude, conforme lemos na Constituição pastoral do Concílio, «a Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a comunidade política nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e a salvaguarda do carácter transcendente da pessoa humana» (Ibidem, nº 76)”[11].

E Bento XVI quis dar, em seu célebre Discurso à Cúria em 22 de dezembro de 2005, uma análise e uma justificação reflexiva dessa nova pregação, onde os homens da Igreja, desde o Vaticano II, adotaram o pressuposto personalista da modernidade. Esse pressuposto se exprime com efeito na constituição Gaudium et spes, que o cardeal Ratzinger, quando era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, havia qualificado de “contra-Syllabus”[12]. Tornado Papa, coube a ele estabelecer (em seu discurso de 22 de dezembro de 2005) que essa contrariedade não existia: “O Concílio Vaticano II, com a nova definição da relação entre a fé da Igreja e determinados elementos essenciais do pensamento moderno, reviu ou melhor corrigiu algumas decisões históricas, mas nesta aparente descontinuidade, manteve e aprofundou a sua íntima natureza e a sua verdadeira identidade. A Igreja, quer antes quer depois do Concílio, é a mesma Igreja una, santa, católica e apostólica peregrina nos tempos”.

Até o ano de 2013, os herdeiros do Concílio haviam estabelecido, por assim dizer, a tarefa de reinterpretar — ou de reler — toda a Tradição da Igreja à luz desse princípio imanentista e personalista, que é a expressão máxima do liberalismo na época moderna e do modernismo desde o Vaticano II. Mas eis que o Papa Francisco parece nos introduzir em um novo processo.

Um novo paradigma?

À primeira vista, Francisco parece ir mais longe, muito mais longe, que seus predecessores aos olhos de muitos católicos. Três exemplos podem atestar isso.

O primeiro exemplo é o do nº 303 da Exortação pós-sinodal Amoris laetitia de 19 de março de 2016. Escrevíamos em outra ocasião que é uma ideia radicalmente falsa que “uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho” e “um comportamento que não alcança ainda plenamente o ideal objetivo” sejam, com toda certeza moral, “o dom de si próprio que Deus pede”. Já encontrávamos aqui o mesmo princípio que ganhará fama três anos mais tarde na Declaração de Abu Dhabi: princípio segundo o qual Deus autoriza positivamente o que era somente até então objeto de um direito negativo, o direito de não ser impedido. Na Exortação apostólica Familiaris consortio de 22 de novembro de 1981, João Paulo II declarava que os esposos cristãos “não podem ver a lei só como puro ideal a conseguir no futuro, mas devem considerá-la como um mandato de Cristo de superar cuidadosamente as dificuldades”. Em outras palavras, ainda que o princípio imanentista da dignidade da pessoa humana autorize o direito negativo, o Papa rejeita a ideia de que Deus mande e aprove o que, em nome desse direito, não é impedido pelos poderes públicos. Com Amoris laetitia, Francisco afirma equivalentemente que o pluralismo e a diversidade das morais são a vontade de Deus e que, no entanto, a lei de Cristo relativa às exigências do matrimônio cristão é somente uma das expressões possíveis da vontade de Deus a respeito da moral conjugal.

O segundo exemplo é o da Declaração de Abu Dhabi — sobre a Fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum — assinada em conjunto com o Grão Imã de Ahmad Al-Tayyeb[13]. O texto afirma que “o pluralismo e as diversidades de religião […] fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos”. Os predecessores de Francisco disseram repetidamente que “o pluralismo e as diversidades de religião são necessárias” em razão precisamente do princípio da liberdade religiosa, adotada pelo Concílio Vaticano II na declaração Dignitatis humanae. Os adeptos das diferentes religiões receberam pela referida declaração o direito de não serem impedidos de professar em público sua religião. A afirmação do Concílio, repetida por Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI é resultado do princípio imanentista da dignidade da pessoa humana, que exige o direito negativo de não se deparar com oposição dos poderes civis no exercício da sua religião, seja ela verdadeira ou falsa. Admitindo essa liberdade da consciência, entendida como um direito negativo de não ser impedido no foro externo do exercício dos atos de religião, Bento XVI condenará a liberdade de religião entendida como um direito positivo de escolher sua própria verdade no foro interno dos atos da consciência, referindo-se a esta “como uma expressão”, como disse em seu discurso de 2005, “da incapacidade do homem para encontrar a verdade” que se torna “uma canonização do relativismo”[14]. A proposta de Francisco, na declaração de Abu Dhabi, parece pressupor tal relativismo e, portanto, vai além do pensamento de seus predecessores.

O terceiro exemplo é do nº 119 da Exortação apostólica Evangelii gaudium, onde o Papa Francisco faz sua própria exegese do nº 12 de Lumen gentium. Para Francisco, a infalibilidade do sensus fidei significa que o Povo de Deus não se engana quando crê, pois ele “não pode enganar-se, ainda que não encontre palavras para explicar a sua fé”; porque a presença do Espírito Santo dá aos cristãos “uma certa conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente, embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão”. Conforme já havíamos observado[15], “tais propostas são extremamente graves, pois estão em fundamental contradição com a ideia tradicional do sensus catholics. […] Elas contradizem tudo o que os Padres da Igreja, os santos doutores e os teólogos disseram e repetiram nos últimos vinte séculos. Elas estão em oposição manifesta com os ensinamentos do Magistério constante. E elas tornam o Povo de Deus uma comunidade carismática”. Ademais, essa explicação de Francisco excede por muito aquela dada até então por seus predecessores, especialmente a de Paulo VI na Declaração Mysterium Ecclesiae, publicada em 24 de junho de 1973. O documento de Paulo VI teve por objetivo imediato dar uma resposta aos argumentos de Hans Küng dirigidos contra a infalibilidade do Magistério. O documento mostrava então qual deve ser a relação exata entre a função profética do Povo de Deus e a função magisterial reservada somente aos membros da hierarquia, ou seja, o Papa e os bispos. Em nome do princípio imanentista da dignidade da pessoa humana, a constituição Lumen gentium postula que o Espírito Santo inspira diretamente o conjunto do Povo de Deus, antes dos ensinamentos da hierarquia; mas junto disso especifica claramente que, embora o Povo já sinta e viva a verdade revelada pelo Espírito, a formulação dogmática promulgada pelo Magistério é-lhe necessário. É por isso que a função magisterial não se reduz a “ratificar o consenso por eles expresso; mas, mais do que isso, o mesmo Magistério pode prevenir e exigir tal consenso, na explicação e interpretação da Palavra de Deus escrita ou transmitida de outros modos”. O texto de Mysterium Ecclesiae inclusive refere-se em nota aqui à 6ª proposição condenada do Decreto Lamentabili de São Pio X: “Na definição de verdades, a Igreja discente e a docente colaboram de tal modo, que nada mais resta à Igreja docente senão sancionar as conjecturas comuns da discente”[16]. Portanto, Francisco vai muito mais longe que seus predecessores, e aliás declara no discurso de 17 de outubro, pronunciado na ocasião do encerramento do Sínodo, que essa concepção do sensus fidei assinalada em Evangelii gaudium, “impede uma separação rígida entre Ecclesia docens e Ecclesia discens, visto que o Rebanho possui também sem próprio «talento» para discernir as novas rotas que o Senhor abre à Igreja”. O princípio imanentista, desenvolvido na continuidade do Vaticano II por Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI chegava a fazer do Povo de Deus o primeiro depositário (e não somente destinatário) da Revelação[17]; mas a complementariedade do Magistério mantinha-se ainda intacta na significação destacada pelo Concílio. Aqui, como nos outros casos, Francisco acentua o relativismo ao aumentar a importância radical do sensus fidei.

Dirão que esses exemplos são isolados. Mas mesmo que eles sejam, eles são sintomáticos, pois exprimem um passo além do pensamento conciliar clássico. Este tinha como ambição fazer os falsos princípios do personalismo se passarem por princípios aparentemente tradicionais, mantendo as salvaguardas artificiais dotadas de uma certa objetividade. Essa ambição aparece claramente na esfera moral, com o ensinamento de João Paulo II relativo à família e à transmissão da vida, cuja expressão dada em Familiaris consortio é a mais acabada. As principais conclusões da moral tradicional (em particular a moral do casamento) são mantidas, mas decorrem de princípios que não são mais tradicionais, mas personalistas. Também notamos isso com liberdade religiosa, onde o direito considerado é um direito negativo, o direito de não ser impedido, nos limites da boa ordem pública da sociedade temporal. Observamos enfim com o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, onde, qualquer que seja a parte de valor salutar reconhecida nas outras religiões, cristãs ou não, a Igreja católica permanece a única onde se encontra a plenitude dos meios de salvação. O ensinamento de Francisco conduz até às últimas consequências a lógica desses princípios personalistas, ao ponto de romper os paradigmas da aparência tradicional tanto da nova moral conciliar, com Amoris laetitia, quanto do ecumenismo e da liberdade religiosa com a Declaração de Abu Dhabi.

Mas são as últimas perspectivas sinodais que nos fornecem os indícios mais inquietantes dessa evolução inédita no domínio da eclesiologia.

Um modernismo que chegou à maturidade

Após os diferentes discursos sobre a Igreja da escuta[18], no âmbito ao qual o Papa Francisco ultrapassou os limites a nova eclesiologia de Lumen gentium, eis-nos aqui de novo na perspectiva de uma Igreja “Povo de Deus”. O “Documento de trabalho para a etapa continental” publicado no último mês de outubro de 2022 pelo secretariado geral do Sínodo é intitulado no Vaticano de “alargar o lugar da tenda” em referência ao versículo de Isaías 54, 2. A ideia de alargamento, sobre a qual nós já nos detivemos para ver a aplicação de um discurso pictórico[19], adquire aqui todo seu sentido.

O processo que está na origem desse documento é por si só revelador e é claramente indicado em seus oito primeiros parágrafos. Esse “Documento de trabalho” é fruto de uma fase consultiva, que é a primeira realizada na preparação do próximo sínodo. É assim que milhões de pessoas, que são apresentadas como “verdadeiras protagonistas do Sínodo” (nº 1), participaram dos encontros em nível local a fim de contribuir para “encontrar a resposta à interrogação de fundo que guia todo o processo: «Como se realiza hoje, aos diversos níveis, tanto local como universal, aquele “caminhar juntos” que permite à Igreja anunciar o Evangelho, em conformidade com a missão que lhe foi confiada? E que passos o Espírito nos convida a dar para crescer como Igreja sinodal?». As diferentes discussões de uns com os outros foram ocasião de exprimir a experiência vivida pelos diferentes membros do Povo de Deus. Essa experiência “traduziu-se em palavras, nos contributos que as diversas comunidades e grupos enviaram às Dioceses, que sintetizaram e enviaram às Conferências Episcopais” (nº 4). O Secretariado do Sínodo reuniu as sínteses das 112 das 114 conferências episcopais e de todas as 15 igrejas orientais católicas (nº 5). O Documento de trabalho é ele mesmo uma síntese, a síntese das sínteses.

Evidentemente, temos aí a aplicação do programa definido pelo Papa Francisco nos discursos que ocorreram no Sínodo de 2015. Assim, o próximo Sínodo será a concretização mesma da Igreja da escuta. Com efeito, o Documento de trabalho, do qual não se precisa exagerar seu alcance, representa uma referência indispensável no processo de preparação do Sínodo, porque ele é o “tesouro ricamente teológico contido na narração da experiência da escuta da voz do Espírito por parte do Povo de Deus, permitindo fazer emergir o seu sensus fidei” (nº 8). É por isso que ele representa um “documento teológico também no sentido de estar orientado ao serviço da missão da Igreja: anunciar Cristo morto e ressuscitado para a salvação do mundo”.

E essa “Igreja da escuta”, onde o Espírito está na fonte da inspiração do Povo, através da sua própria experiência vivida, não é Ela mesma a culminação ou a maturação do princípio imanentista e personalista introduzido pelo Vaticano II? A Revelação divina se confunde com a consciência, e a Igreja, encarregada de receber e transmitir a Palavra que Deus nos revelou, se identifica com a consciência comum do Povo de Deus. O Magistério neste caso tem por ministério “traduzir em palavras” essa experiência do sensus fidei. E a melhor linguagem, por ser a mais apropriada para sintetizar essa vivência coletiva, não é aquela das expressões ilustradas de bom grado usadas pelo Papa Francisco? Porquanto tais expressões se mostram adequadas para significar um dado experiencial, assim como pôde observar um dos representantes habituais da nova teologia conciliar a respeito da linguagem usada na constituição Lumen gentium. “Podemos ver que a palavra começou no Concílio para ser expressa de maneira diferente do que no passado recente ou mais distante da Igreja Ocidental. A mudança de estilo observada implica também uma mudança na forma de conceber a recepção da mensagem e a resposta que lhe é dada. […]Com efeito, tudo o que o Concílio diz, também no plano jurídico e teológico, faz parte de uma repetição original, realizada em modos narrativos e poéticos que lhe são próprios, do testemunho confiado à Igreja desde os primórdios. A adesão propriamente intelectual ou a obediência ético-legal fazem parte de um reconhecimento mais amplo, que é também um compromisso e envolve a pessoa toda em si e na comunidade que comunica o testemunho”[20]. O estilo pictórico ou poético é aquele que convém para traduzir as intuições do sensus fidei e Francisco não se engana.

Pode ser então que esse estilo esteja em perfeita correspondência com a nova etapa que estamos vivendo com o Papa Francisco: etapa de um personalismo imanentista que chegou à sua culminação e, por causa deste fato, no processo de reação sobre os elementos já desarticulados da Tradição da Igreja que visa dar-lhes a nova configuração que exige um neomodernismo amadurecido. Francisco, Papa do “coagula” após Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, papas do “solvere”? A explicação já é recorrente[21] e nós não temos aqui a pretensão de fazer dela a pedra filosofal da crise da Igreja. Mas está claro que dez anos após a eleição do Cardeal Bergoglio para o Soberano Pontificado, os pressupostos do Vaticano II fazem sentir seus resultados de uma maneira singularmente marcante. Isso pede um discernimento por parte dos católicos cada vez mais perplexos.

Notas

  1. Cf. Augustin Cochin, La Révolution et la libre pensée,p. 95.
  2. Mons. Henri Delassus (1835-1921). Edição em português: A Conjuração Anticristã. O Tempo Maçônico que Quer Se Erguer Sobre as Ruínas da Igreja Católica, Castela Editorial, 2016. Ordenado em Cambrai em 1862, Henri Delassus foi nomeado capelão da basílica de Notre-Dame-de-la-Treille em 1874. Em 1904, foi nomeado prelado da residência papal e depois protonotário apostólico em 1911. Em 1914, torna-se o primeiro decano do capítulo da catedral da nova diocese de Lille. Desde 1872 ele colaborou com o jornal La Semaine religieuse de Cambrai, do qual tornou-se proprietário e diretor em 1875. Ele nunca deixou de denunciar as primícias do globalismo e os esboços de um governo mundial. Sua obra pode ser considerada, no início do século XX, como a síntese de toda a reflexão contrarrevolucionária do século XIX.
  3. Como o testemunham os livros de Jean Lombard, La Face cachée de l’histoire moderne, Omnia veritas Ltd, 2016 ; Jean-Claude Lozac’hmeur, Fils de la Veuve. Essai sur le symbolisme maçonnique, Éditions Sainte Jeanne d’Arc, 1990 ; Epiphanius, Maçonnerie et sociétés secrètes. Le côté caché de l’histoire,Publications du Courrier de Rome, 2005.
  4. Como o testemunham os trabalhos de Pierre Hillard, La Marche irrésistible du nouvel ordre mondial: destination Babel, François-Xavier de Guibert, 2007 ; ou o de Ghuilhem Golfin, Babylone et l’effacement de César, Editions de l’Homme Nouveau, 2019.
  5. Esse adjetivo significa que o postulado dessa dignidade implica a confusão de natureza e graça.
  6. Concílio Vaticano II, constituição pastoral Gaudium et spes, nº 12, 13 e 17; João Paulo II, Encíclica Redemptor hominis de 4 de março de 1979, nº 13 e Encíclica Evangelium vitae de 25 de março de 1993, nº 7 e 84.
  7. Concílio Vaticano II, constituição pastoral Gaudium et spes, nº 2.
  8. Encíclica Evangelium vitae de 25 de março de 1993, nº 84. Nesta última passagem, João Paulo II escreve: “Em cada criança que nasce e em cada homem que vive ou morre, reconhecemos a imagem da glória de Deus: nós celebramos esta glória em cada homem, sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo”.
  9. Esse ponto se explica do fato de que se trata aqui de um personalismo imanentista em que a natureza, se não é confundida, ao menos é considerada inseparável da graça fundamental do “gérmen divino”. Se o homem é divino, 1º não se pode impedir a expressão pública da sua consciência (liberdade religiosa); 2º o Espírito Santo age em maior ou menor grau no exercício de todas as religiões (ecumenismo); 3º Deus se revela primeiro na consciência, e portanto antes no Povo e só depois fala à Igreja (democratização da Igreja).
  10. Poderíamos pensar que é a maneira de ver adotada por Augustin Cochin a qual já se citou, quando ele sintetiza a apresentação que ele dá da Constituinte dizendo que ela teve por tarefa “aplainar antes de construir”. Mas esse atalho se mostra equivocado, pois não leva em conta a análise aprofundada que Cochin começa por fornecer ao seu leitor. “A grande obra dessa doutrina, diz, o ato preparatório de todo o sistema, teve a imensa destruição política da Constituinte”. Mas ele distingue: “Ela consiste em matar todos os corpos políticos ou sociais que têm uma alma, uma vida, um espírito próprio, para substituí-los por mecanismos inertes”. E é só depois que vem o atalho citado acima. A expressão importante, sob a pluma de Cochin – importante porque traduz exatamente a ideia do solvere – é aquela onde ele escreve que a obra da Constituinte consiste em “substituí-los por mecanismos inertes” e não em “fazer tábula rasa”.
  11. João Paulo II, Encíclica Redemptor hominis, nº 13.
  12. Joseph Ratzinger, Les Principes de la théologie catholique. Esquisse et matériaux, Téqui, 1982, p. 426–427.
  13. V. artigo “François et le dogme (II)” no Courrier de Rome de fevereiro de 2019.
  14. Ver o Courrier de Rome de setembro de 2011.
  15. V. artigo “Le sens de la foi, principe et fondement d’une église synodale?” no Courrier de Rome de outubro de 2015.
  16. DS 3406.
  17. V. “Deux conceptions du Magistère”, artigo 3, n° 10 e 11 em Vatican II, cinquante ans après. Quel bilan pour l’Église?,Atas do 11º Congresso Teológico do Courrier de Rome, de 4 a 6 de janeiro de 2013, p. 257–25, DS 3406.
  18. Ver o Courrier de Rome de outubro de 2015.
  19. Ver o artigo “Sessenta anos do Concílio” em: http://catolicosribeiraopreto.com/os-60-anos-do-concilio/
  20. Dom Ghislain Lafont, Imaginer l’Église catholique, Cerf, 2000, p 87–89 et 95–96.
  21. Já se quis fazer de João Paulo II o papa do “coagula” após Paulo VI, o papa do “solvere”. Cf. o livro Mystère d’iniquité, prefaciado pelo bispo sedevacantista Mons. Dolan, p. 98. “A liberdade religiosa corresponde ao solve (= dissolver, destruir o antigo) dos maçons. A construção de uma federação universal de todas as religiões corresponde ao coagula (= coagular, construir sobre novas bases) maçônico. Montini fez a primeira fase; Wojtyla inaurou a segunda: solve et coagula!”.