Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est
*Texto escrito antes de sua beatificação
Algumas pessoas, certamente, conservaram a extraordinária personalidade de João Paulo II como: o “desportista de Deus” que percorria o mundo para levar a sua mensagem, o idoso que, uma vez doente, soube permanecer íntegro e fiel à sua missão. Outras foram marcadas por seus apóstrofos apelando às grandes aspirações: “Duc in altum! “, “Não tenha medo!”, “França, o que fizeste do seu batismo? “. As últimas destacam os gestos espetaculares deste Papa, ainda que desde então tenham adquirido uma certa banalidade:
- Vésperas na Catedral Anglicana em Canterbury em 1982,
- a Sinagoga ou Assis em 1986,
- o beijo do Alcorão em 1999,
- ou ainda a movimentada festa do Jubileu do ano 2000: abertura da Porta Santa com líderes de comunidades não católicas,
- o martirológio ecumênico ou a oração no Muro das Lamentações.
Gestos considerados proféticos, gestos que fizeram muitos sonharem com um mundo melhor sendo esse mais unido…
Quem é, então, João Paulo II? Podemos nos ater a esses acontecimentos factuais, seja para clamar com a multidão “santo súbito” ou para denunciar uma atitude considerada, no mínimo, desconcertante? Quem é, então, João Paulo II? Uma vez que a sua beatificação está na agenda, é importante desvendar a estrutura do seu pontificado, decifrar a sua mensagem fundamental.
Os discursos fundadores de um pontificado
Sem dúvida, João Paulo II foi, antes de tudo, o papa do homem. Se é necessário convencer-nos disso, basta voltarmos aos discursos fundadores do seu pontificado, como aquela primeira mensagem de Natal que, como jovem Papa, intitulou “Natal, a festa do homem” (mensagem de 25 / 12/78):
“Natal é a festa do homem. É o nascimento do homem […] Essa mensagem é dirigida a cada homem, precisamente enquanto homem, à sua humanidade. Com efeito, é a humanidade que se encontra elevada ao nascimento terreno de Deus.”
A perspectiva do Papa é clara
“Se celebramos hoje de forma tão solene o nascimento de Jesus, o fazemos para testemunhar o fato que cada homem é único, absolutamente singular.”
Para João Paulo II, a dinâmica da Encarnação já não se orienta prioritariamente à pátria celeste, que se tornou acessível graças ao Verbo Encarnado, mas verso à plena realização da humanidade neste mundo terreno.
Sua primeira encíclica, a Redemptor hominis, não teve outra mensagem fundamental. Nela, o Papa convidava a Igreja a tomar o homem como “caminho fundamental” (nº. 14) para “tornar mais humana a vida humana na terra” (nº. 15). Desde então, a salvaguarda dos direitos humanos – doravante denunciada pela Igreja mas agora “um marco no caminho para o progresso moral da humanidade” (discurso de 02/10/79) – tornava-se uma das “maiores preocupações” da Igreja (discurso de 12/06/84). Para quem se recorda, o homem e a sua dignidade continuaram a ser o tema da primeira viagem de João Paulo II a França, bem como do seu discurso proferido na sede da UNESCO:
“Há […] uma dimensão fundamental, capaz de abalar os próprios fundamentos dos sistemas que estruturam o conjunto da humanidade e de libertar a existência humana, individual e coletiva, das ameaças que pesam sobre ela. Esta dimensão fundamental é o homem” (discurso de 06/02/80).
O “sonho” de uma civilização do amor
Para João Paulo II, o respeito pelo homem e sua dignidade era o fundamento sobre o qual ele apoiou o grande projeto do seu pontificado: promover uma “civilização do amor” que respondesse à “ imperiosa necessidade dos povos de sonhar com um futuro de paz e prosperidade para todos ” (mensagem de 09/05/03). Tal era o “sonho” do falecido Papa, a sua esperança mais profunda, aquela em torno da qual centrou o seu pontificado.
Antes de tudo, ele gostava de citar Paulo VI :
“Trata-se de construir um mundo na qual cada homem, sem distinção de raça, religião, nacionalidade, possa viver uma vida plenamente humana, livre das servidões que lhe são impostas pelos homens e de uma natureza insuficientemente dominada; um mundo onde a liberdade não seja uma palavra vã e onde o pobre Lázaro possa sentar-se à mesma mesa que o rico” (Populorum progressio, nº. 47).
João Paulo II pretendia, portanto, “edificar a civilização do amor, fundada nos valores universais da paz, da solidariedade, da justiça e da liberdade” (mensagem de 11/12/86), que seria “um encontro convergente das inteligências, vontades, corações, rumo ao objetivo que o Criador lhes propôs: [não o Céu, mas] tornar a terra habitável para todos e digna de todos” (mensagem de 12/08/82). Reuniria, então, todos aqueles que ele chamava de “crentes“; seria incongruente entender isto por aqueles que professam a fé católica, pois designa todos aqueles que reconhecem a dimensão transcendente da pessoa humana (discurso de 11/10/88).
Este era o “sonho” de João Paulo II, o seu desejo mais querido, que voltou a apresentar ao mundo nas vésperas do terceiro milénio:
“A humanidade é chamada por Deus para formar uma única família. Devemos reconhecer e encorajar este desígnio divino promovendo a procura de relações harmoniosas entre as pessoas e entre os povos, numa cultura partilhada de abertura ao Transcendente, de promoção do homem, de respeito pela natureza. Essa é a mensagem do Natal, esta é a mensagem do Jubileu, estes são meus votos no início de um novo Milênio” (mensagem de 8/12/99).
Assis, oração e religiões
O encontro inter-religioso de Assis foi, a seus olhos, o ato fundador desta civilização
“Eu tive uma grande visão diante dos olhos: todos os povos do mundo em marcha, de diferentes lugares da Terra, para se reunirem com o único Deus como uma só família. Naquela tarde memorável, na cidade natal de São Francisco, este sonho [da unidade do gênero humano] tornou-se realidade: era a primeira vez que representantes das diversas religiões do mundo se reuniam” (mensagem de 28/ 08/01).
Juntos para rezar. Com efeito, João Paulo II colocou a oração no primeiro plano dos meios que permitiram o advento da civilização do amor. Não era mais então o ato da religião que ordenava ao Deus verdadeiro, mas simplesmente a expressão do sentimento religioso (discurso de 10/01/87). Para tal oração bastam duas coisas: a referência a uma transcendência e a sinceridade – sempre suposta – do coração humano. É, portanto, o destino comum de todas as religiões, todas as quais segundo João Paulo II, são suscitadas pelo Espírito Santo (audiência de 09/09/98) e estabelecem uma relação efetiva com “a Divindade” (mensagem de 28/09/1998). 08/01). Daí os numerosos encontros inter-religiosos que ele suscitou, embora sempre tivessem sido condenadas até então. Aos olhos de João Paulo II estes encontros são importantes:
“cada um respeita o outro como irmão e irmã na mesma humanidade e com suas convicções pessoais” (discurso de 09/01/93), e “estar lado a lado na diversidade das expressões religiosas, lealmente reconhecidas como tal, manifesta de forma visível a aspiração à unidade da família humana” (mensagem de 21/09/00).
É, portanto, na sua pluralidade que, segundo João Paulo II, as religiões promovem a paz. Somente a sua pluralidade, vivida pacificamente, permite que as religiões se coloquem como modelos para o mundo. A partir daí, todo proselitismo torna-se condenável, porque a identidade específica de cada crença deve, ao contrário, ser “preciosamente preservada”(discurso de 12/12/96). O desejo de conversão é substituído, portanto, pelo desejo de viver uma multirreligiosidade colocada como modelo de uma multiculturalidade pacífica:
“Os homens e as mulheres do mundo veem como aprenderam a estar juntos e a rezar, cada um segundo a sua própria tradição religiosa, sem confusão e em um respeito mútuo, ao mesmo tempo que mantêm plena e firmemente as suas próprias crenças. Numa sociedade em que convivem pessoas de diferentes religiões, este encontro é um sinal de paz. Todos podem ver como, neste espírito, a paz entre os povos não é mais uma utopia distante” (mensagem de 28/08/01).
Esta é a alma do “espírito de Assis“, para o qual o falecido Papa trabalhou tão arduamente. Consiste em subordinar todas as religiões, inclusive a Católica, ao serviço do “sonho” de João Paulo II, o advento de um novo humanismo:
“O espírito de Assis encoraja as religiões a oferecer sua contribuição a este novo humanismo de que o mundo contemporâneo tanto necessita [os encontros inter-religiosos] geram um humanismo, ou seja, uma nova maneira de olhar uns para os outros, de entenderem-se, de trabalharem pela paz.” (mensagem de 03/09/04).
E João Paulo II conclui:
“Então começará a se cumprir a palavra de Deus proferida pelo profeta: “O lobo habitará com o cordeiro, o leopardo deitar-se-á ao pé do cabrito, o novilho e o leão viverão juntos, e um pequeno menino os conduzirá” (mensagem de 25/01/02).
No coração de um pontificado
João Paulo II tomou como eixo do seu pontificado a edificação desta civilização do amor, tendo a oração como mero sentimento religioso, como motivo de esperança no homem. Esta civilização do amor, ou seja, a unidade da família humana aqui na Terra, foi a força motriz por trás de suas grandes decisões pontifícias. Foi por isso que João Paulo II quis, com uma vontade pessoal muito forte, reunir todas as religiões em Assis para valorizar a oração de cada uma; foi por esta razão que ele então insistiu em desenvolver o que ele chamou de “espírito de Assis“.
Foi também este motivo que, segundo as palavras do próprio Papa, foi o principal motivo de muitas das suas viagens. No mesmo espírito, João Paulo II não hesitou em chamar de “peregrinação” – isto é, sacralização – certas iniciativas que tinham apenas o homem como centro; ele então fez uma “peregrinação” a Auschwitz (discurso de 17/06/79), ao memorial de Hiroshima (discurso de 25/02/81) ou às trilhas do passado espiritual da Índia (audiência de 26/ 02/86). Ele também fez uma “peregrinação” à herança espiritual de Lutero (reunião de 17/11/80) ou nas pegadas de Mahatma Gandhi (discurso de 31/01/86). Neste mesmo espírito, ele ainda redefiniu profundamente a noção de martírio para estendê-la a qualquer pessoa que já não morresse por ódio a Cristo, mas por ódio ao homem ou à liberdade religiosa. As vítimas do Holocausto ou de Hiroshima tornaram-se assim mártires (mensagem de 04/07/85).
Rumo à beatificação?
Beatificar ou não João Paulo II é também avaliar sua mensagem à luz da Igreja.
- Pontificado profético no alvorecer de uma “nova era” (mensagem de 8/12/99), ou aliança adúltera com um mundo rebelde?
- Promoção heroica da mensagem cristã ou distorção utópica do Evangelho de Cristo?
Estas são, enfim, as terríveis perguntas que aqueles que se preparam para beatificar Karol Wojtyla não podem se esquivar. O desafio de tal beatificação aparecem então pelo que são. Vão além do destino de um homem, tanto mais porque em muitas ocasiões João Paulo II afirmou que tal práxis era apenas uma ilustração viva do Concílio Vaticano II. Sem dúvida, portanto, caso ocorra tal beatificação, não deixará de ter consequências para o futuro imediato da Igreja Católica.
Deus quer a unidade do gênero humano?
Dizer que Deus quer a unidade do gênero humano pode ser entendido de três maneiras:
- Deus desejaria a unidade última do gênero humano, ou seja, a salvação eterna de cada homem, e a eficácia de sua vontade asseguraria a todos uma comunidade efetiva de destino.
- Deus desejaria a unidade última do gênero humano como acaba de ser entendida, mas desejaria também a realização de uma unidade temporal deste mesmo gênero humano, que seria uma prefiguração da unidade definitiva própria da pátria celeste.
- Deus não desejaria a unidade última do gênero humano de uma vontade efetiva, mas apenas de uma vontade suficiente – que não assegura a todos os homens uma comunidade efetiva de destino sobrenatural; mas Ele desejaria uma unidade temporária da família humana aqui na Terra, que seria então o cumprimento do destino temporal da criação.
Quanto ao primeiro ponto, é contrário à fé católica afirmar que Deus quer, com vontade efetiva, a unidade sobrenatural e definitiva do gênero humano no além. Isso seria endossar as teorias da Redenção Universal.
Quanto ao segundo ponto, além do que acaba de ser dito, ainda tem contra si assumir uma dimensão milenarista tantas vezes denunciada pela Igreja: a humanidade jamais voltará à harmonia do paraíso terrestre aqui ne Terra.
O terceiro ponto também cai sob esta condenação do milenarismo.
Com referência ao mundo atual, é revelado que Deus não está disposto a restaurar a harmonia perfeita para a humanidade aqui na Terra. Do Gênesis ao Apocalipse, a Bíblia revela como Cristo é uma pedra de tropeço para o mundo (Is. 8, 14) colocada como sinal de contradição (Lc 2, 34). Desde os primeiros momentos da Encarnação, surgiu esta oposição: “A luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a receberam […] Veio para os seus, e os seus não o receberam” (Jo 1, 5 e 11). Até o fim dos tempos, a inimizade entre os respectivos descendentes da Mulher e da Serpente se encarnará através dos homens (Gn 3, 15). Os filhos das trevas continuarão a perseguir os filhos da luz, “porque o discípulo não está acima do mestre” (cf. Jo 15, 18-20). Dessas lutas infernais que perdurarão até o fim dos tempos, temos como testemunha o apóstolo a quem Jesus amava, em suas grandiosas visões de Pathmos (Ap cap. 12 e 13).
Os Maçons face a João Paulo II: provocação?
Sinceros ou provocativos, os maçons saudaram a ação de João Paulo II. Assim, da Grande Loja Maçônica da França, por ocasião do encontro inter-religioso de Assis.
“Os maçons da Grande Loja Nacional Francesa desejam associar-se de todo o coração à oração ecumênica que reunirá, no dia 27 de outubro, em Assis, todos os líderes de todas as religiões em favor da paz no mundo”.
Esta mesma reunião de Assis rendeu este comentário de Armando Corona, Grão-Mestre do Grande Oriente da Itália.
“Nosso inter-confessionalismo nos valeu a excomunhão recebida em 1738 de Clemente XI. Mas a Igreja certamente errou, se é verdade que em 27 de outubro de 1986 o atual Pontífice reuniu em Assis homens de todas as confissões religiosas para rezar pela paz. E o que nossos irmãos mais buscavam quando se reuniam nos templos, senão o amor entre os homens, a tolerância, a solidariedade, a defesa da dignidade da pessoa humana, considerando-se iguais, acima de credos, políticas, credos religiosos e cores de pele?”
O auge do equívoco data de 1996. Naquele ano, o Grande Oriente da Itália quis conceder a João Paulo II o prêmio Galileu Galilei, a mais alta distinção da Maçonaria italiana para não-maçons.
“A nossa intenção, explicou o Grão-Mestre da referida Loja, é homenagear um homem que, ao contrário dos seus predecessores, demonstrou grande abertura intelectual ao reabilitar Galileu, ao promover uma análise crítica da Inquisição, um homem que, numa palavra, lutou pela tolerância e pelo diálogo entre todas as religiões, como nos recorda a cúpula histórica do encontro inter-religioso de Assis» (Corriere della Sera de 22/12/1996, p. 14).
A Santa Sé considerou tal atribuição provocativa.
Seria ainda provocativa, a mensagem da Grande Loja Maçônica da França sobre a morte de João Paulo II?
“Defensor dos direitos humanos, dos valores morais e espirituais universais, Sua Santidade o Papa João Paulo II foi um pastor inspirado que levou o mundo, através de seu longo Pontificado, a tornar mais tangível o diálogo de cada homem com o seu Criador.”
Pe. Patrick de La Rocque, FSSPX (Atualmente Prior de Nice, participou de discussões teológicas com Roma entre 2009 e 2011).