NÃO SE PODE SALVAR A DIGNITATIS HUMANÆ

“Alguns teólogos tentaram salvar a qualquer custo a declaração do Vaticano II sobre a liberdade religiosa, demonstrando que ela estaria em continuidade com a Tradição. A posição de suas tentativas e fracassos.”

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Todos os católicos concordam em dizer que ninguém pode ser constrangido a aderir à fé. A questão da liberdade religiosa reside em um outro ponto. Ela consiste em saber se um Estado católico tem o direito de reprimir o exercício público das falsas religiões, exatamente porque são falsas. Toda a Tradição responde de forma afirmativa. O Concílio Vaticano II o nega.

O ensino tradicional da Igreja simplesmente considera uma tolerância aos falsos cultos para evitar um mal maior. Ao contrário, “o regime da liberdade religiosa proíbe essa intolerância legal, segundo a qual alguns cidadãos ou algumas comunidades religiosas seriam reduzidas a uma condição inferior quanto aos direitos civis em matéria religiosa.”[1]

À primeira vista, a questão é muito mais importante do que poderia parecer, pois envolve a obra da Igreja no mundo e seu fim. Ora, o fim (chamado também causa final) influi sobre toda a ação, desde o princípio desta. É “uma questão de vida ou morte para a Igreja.”[2] Ela recebeu a missão de fazer seu Esposo reinar ao ponto de ser estabelecida uma cristandade, ou suas prerrogativas reais serem plenamente reconhecidas. O Concílio Vaticano II, ao contrário, se associou ao ideal da democracia moderna, onde o Estado deve velar para que “ninguém seja forçado a agir contra sua consciência, nem impedido de agir, em justos limites, conforme sua consciência, em privado como em público, sozinho ou associado a outros.”[3] Os falsos cultos não deveriam ser somente tolerados, mas protegidos.

A oposição é manifesta, e, todavia, alguns tentaram justificar o Concílio Vaticano II. Eles querem ver uma continuidade entre o magistério tradicional e a Declaração sobre a liberdade religiosa, chamada Dignitatis humanæ. Destes estudos, alguns fiéis ficam com o leve pressentimento de que a questão é complexa, que é reservada a uma elite de teólogos, e que o debate permanece aberto. Demonstremos que não é nada disso. A restauração do reinado de Cristo é assunto de todos os católicos. Para consegui-lo, escolhemos abordar, uma após a outra, as principais tentativas de justificação da liberdade religiosa, e refutá-las.

A HIPÓTESE DE UM DIREITO CIVIL NEGATIVO

A tentativa inicial de justificar a Dignitatis humanæ é a seguinte: o direito à liberdade religiosa que a declaração sustenta seria apenas um direito “civil negativo”. Nesta hipótese, o Concílio Vaticano II reconhece no homem não um direito natural em praticar um falso culto (felizmente!), mas um direito natural a não ser impedido de exercê-lo por qualquer poder humano que seja. Ainda de acordo com essa hipótese, se trata de um direito natural porque está fundamentado “na dignidade própria da pessoa humana”, e submete, portanto, sempre e em toda parte. Esse direito natural deve ser reconhecido pela lei[4]: trata-se, portanto, de um direito natural em um direito civil! É um direito que está ligado à pessoa, independente do uso que ela faça dele. Isso não depende da verdade da religião, sobretudo sendo dado que “a maioria dos Estados são atualmente incapazes de julgar se tal homem está objetivamente no erro religioso.”[5]

O que responder a essa tentativa? Que o direito civil não pode constranger o direito natural. Ora, este afirma que “o que não responde à verdade e à moral não tem, objetivamente, nenhum direito à existência, nem à propaganda, nem à ação.”[6] Ele também não pode editar regras ilimitadas de cautela quanto à tolerância do mal, que depende, intrinsecamente, das circunstâncias variáveis nas quais se encontram os Estados. Quanto à incapacidade na qual estes se encontrariam para reconhecer a verdadeira religião, ela é culposa e não pode compor nenhum direito.

O LIMITE DA ORDEM MORAL OBJETIVA

Outra explicação justifica a liberdade religiosa sustentando que, no texto, Dignitatis humanæ preconiza uma liberdade religiosa limitada pela ordem moral objetiva. Com efeito, é preciso saber que a declaração Dignitatis humanæ, ao preconizar a liberdade religiosa, acrescenta, ainda assim, que é um direito apenas enquanto não contraria “a ordem pública justa.”[7]

A essa explicação é necessário responder que “a ordem pública justa”, tal como a entende a declaração conciliar, é insuficiente e não corresponde à ordem moral objetiva que somente a Igreja defende. Se essa “ordem pública justa” da Dignitatis humanæ, por exemplo, atribuísse tal lugar à religião católica, que excluísse a liberdade religiosa para qualquer outra religião, então, certamente, poder-se-ia sustentar que o homem tem direito à liberdade religiosa na medida em que a “ordem pública justa” não seria violada, ou seja, na medida em que essa religião não fosse outra senão a religião católica… Porém nem o texto do Vaticano II, nem os discursos de todos os papas depois do concílio ensinam que somente a Igreja católica tem direito à liberdade religiosa, e que, por exemplo, o culto muçulmano deveria ser limitado à esfera privada, visto que ele permite a poligamia!

E mesmo que fosse o caso, a liberdade religiosa do Vaticano II ainda impediria o Estado de se pronunciar sobre a verdade ou a falsidade intrínseca de uma religião, e não lhe permitiria concorrer à missão sobrenatural da Igreja. É professar “uma tese absolutamente falsa, um erro perniciosíssimo” (São Pio X), a saber, a separação da Igreja e do Estado.

INCOMPREENSÃO DE PIO IX

Propõe-se ainda uma outra via para reabilitar a declaração sobre a liberdade religiosa. Em sua encíclica Quanta Cura, o papa Pio IX teria condenado apenas aqueles que não respeitam o direito da Igreja e dos católicos. É necessário dizer, com efeito, que, nesta encíclica, o papa Pio IX condena a seguinte proposição: “a melhor condição da sociedade é aquela onde não se reconhece ao poder o dever de reprimir, mediante penas legais, os violadores da religião católica, salvo quando a paz pública o exija.”[8] Ora, essa proposição é completamente semelhante ao que ensina (mas desta vez para aprová-la) o Concílio Vaticano II. Para salvar a Dignitatis humanæ, alguns pretendiam limitar a extensão da condenação de Pio IX, sustentando que os “violadores” seriam aqueles que não respeitam os direitos da Igreja.

Ora, é absurdo pensar que Pio IX se limitaria a exigir “o direito comum” para os católicos. Nenhum contemporâneo imaginou tal coisa, sobretudo os inimigos da Igreja.

Além do mais, qualquer pregação pública contrária à fé católica é uma violação da verdadeira religião, assim como toda propaganda imoral é uma violação da moral. Proclamem que Jesus Cristo não é Deus, ou que a mãe de Deus não é virgem, e a Igreja é escarnecida.

INCOMPREENSÃO DE LEÃO XIII

Outra tentativa de justificar a Dignitatis humanæ: desta vez é Leão XIII que não teríamos compreendido. Com efeito, devemos saber que, em sua encíclica Libertés, o papa Leão XIII condena a liberdade religiosa. Ora, neste texto, dizem-nos, o papa Leão XIII não teria falado sobre o que o Estado deve fazer quando se abusa do direito de consciência.

Recordando o dever de respeitar a consciência individual, Leão XIII não teria dito “o que acontece quando o homem abusa deste direito afirmativo seguindo uma consciência errônea.”[9] Isso teria sido, com efeito, uma omissão gigantesca!

Contudo, basta ler as considerações deste grande papa sobre a tolerância ou sobre os deveres dos Estados para se dar conta de que não existe nada disso. Ninguém pode ser forçado a agir contra sua consciência, mas o Estado tem, certamente, o dever, tanto quanto possível, de reprimir as manifestações públicas das consciências falsas.

LIBERDADE RELIGIOSA TRADICIONAL?

Como é preciso queimar todos os cartuchos para justificar o Concílio, alguns ainda imaginaram que a doutrina que ele contém sobre a liberdade religiosa já teria sido, na realidade, enunciada pelo Magistério no passado.

Inicialmente, teria sido diante do nazismo e do comunismo. Ao que se deve responder que, diante dos Estados totalitários, os papas puderam enunciar o dever e o direito de prestar um culto a Deus sem especificar a natureza do único culto que Ele aprova, ou seja, sem dizer explicitamente que a única liberdade religiosa que existe concretamente é aquela da Igreja católica. Eles defenderam o direito fundamental de exercer o culto divino, direito que os regimes ateus e perseguidores não querem reconhecer.

Nestes textos, as expressões “seguir a vontade de Deus”, “crente”, “professar sua fé”, “culto de Deus”, “professar a religião” são voluntariamente abstratas a fim de estigmatizar mais radicalmente os erros dos Estados totalitários que impedem toda vida religiosa por princípio. Mas os papas jamais falaram de um direito a não ser impedido de professar um falso culto! O direito objetivo e real não pode excluir a Igreja, como recordava o papa Pio XI. O direito, enunciado de modo abstrato, se realiza concretamente apenas na e pela Igreja católica.

O papa Pio XII falava com a mesma precisão: “O respeito da pessoa humana, dos direitos humanos intangíveis e, mais precisamente, daqueles do indivíduo e da família, entre os quais se encontram a plena liberdade de exercer o verdadeiro culto divino e o direito dos pais de criarem os filhos e prover sua educação, é um dos princípios fundamentais sobre os quais se deve basear uma “política cristã”.”[10]

Ao contrário, a declaração sobre a liberdade religiosa exclui, por princípio, a verdade da religião. Mesmo quando a religião fosse falsa, o homem manteria o direito de professar e propagar sua religião, independente de qual fosse.

Uma segunda hipótese se levantou na mesma ordem: a liberdade religiosa seria “tradicional”, pois afirmada pelo discurso Ci Riesce do papa Pio XII. Diante de um grupo de juristas italianos, o papa Pio XII se perguntava, com efeito, se um Estado católico poderia se unir a uma comunidade jurídica de tal modo que fosse levado a tolerar um culto não-católico: “Em circunstâncias determinas, pode acontecer de (Deus) não dar aos homens nenhum mandamento, nem impor nenhum dever, nem conceder sequer algum direito de impedir e reprimir o que é falso e errôneo? Um olhar sobre a realidade permite uma resposta afirmativa.

Basta ler a explicação do papa Pio XII para constatar que de forma alguma ele não tem em mente a liberdade de consciência tal como entende o magistério pós-conciliar. Ele se contenta em recordar o direito de tolerância. Em si, o mal deve ser impedido. Contudo, em certas circunstâncias, é melhor permiti-lo para evitar um mal maior. Faltando com esse dever, não se agiria injustamente em relação a aquele que está no erro, contudo ser-se-ia responsável do mal maior assim provocado: “O dever de reprimir os desvios morais e religiosos não pode, portanto, ser uma norma definitiva de ação. Deve estar subordinado a normas mais elevadas e mais gerais que, em certas circunstâncias, permitem, e até fazem revelar-se como benefício aquele de não impedir o erro, para promover um bem muito maior.” Não se trata de um direito inalienável da consciência individual, mas de uma questão de prudência política. Cabe aos chefes de Estados católicos, sob a direção da Igreja, medir “as consequências nocivas que nascem da tolerância, comparadas com aquelas que, após a aceitação da fórmula de tolerância, se encontrarão poupadas à Comunidade dos Estados”.

ABUSO E USO DO DIREITO

Chegamos, enfim, à última tentativa de justificar a Dignitatis humanæ. Ela está baseada na distinção entre abuso e uso do direito. Pode-se resumi-la assim: o abuso do direito nem sempre tira o uso do direito. Os defensores da liberdade religiosa reconhecem que os tributários das falsas religiões abusam de seu direito, mas afirmam que isso não deve impedi-los de espalhar seus erros, pois “o abuso do direito nem sempre tira o direito”[11]. Seja como for esse princípio, os três exemplos propostos para ilustrá-lo mostram que a aplicação que dão à liberdade religiosa é… abusiva!

Primeiro exemplo dado por essa tentativa: o direito parental não é exercido mesmo quando os pais ensinam erros aos seus filhos? Responderemos com São Tomás que os filhos, “se ainda não têm o uso da razão, estão, pelo direito natural, sob a tutela de seus pais, conquanto eles não possam se governar por si próprios.”[12] Os erros dos pais serão, consequentemente, aqueles dos filhos, sendo dado que estes são “ordenados a Deus pela razão de seus pais.”[13] Assim como o Estado não pode impedir seus súditos de agir conforme a consciência errônea em privado, ele não pode tirar os filhos dos pais que lhes ensinassem erros. É natural que a vida religiosa dos filhos corresponda a aquela de seus pais, e o Estado não pode intervir nisso tando quanto não pode impedir um pagão de ter um pequeno buda em seu quarto! Isso não tem nada a ver com um culto público que o Estado pode proibir porque ele afeta o bem comum.

Segundo exemplo: nenhum pecado tira o direito à vida. O exemplo não é válido. Com efeito, ainda que haja, evidentemente, uma proporção entre a falta e a pena, é preciso dizer novamente que o Estado não é encarregado de reprimir as desordens que não têm influência direta sobre a sociedade. Uma falta grave, mas privada, não tira “o direito à vida” terrestre. Por outro lado, o Estado não pode ignorar a propaganda de uma doutrina errônea. A honra de Nosso Senhor, a salvação da cidade e a proteção dos indivíduos requerem que os ministros das falsas religiões sejam reduzidos ao silêncio na medida do possível.

Terceiro exemplo: o mal uso de seus bens não tira o direito de propriedade. Mas esse exemplo não é um exemplo. Com efeito, para prover suas necessidades, e aquelas de sua família, é natural que o homem possua bens próprios. Na medida em que o bem comum não está em jogo, o Estado ultrapassaria seu poder se ele pretendesse espoliar aqueles que usassem mal sua propriedade. Novamente, isso não tem nada em comum com a profissão pública de uma religião.

Para concluir, quiseram acreditar que a declaração do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa colocaria o homem em melhores condições para aderir à única verdadeira Igreja. Essa negação implícita do pecado original provocou a apostasia de milhares de católicos antes protegidos por Estados preocupados com seu dever para com Cristo Rei. Parece que somente a visão do divino juiz derrubará essa utopia sacrílega. Esperamos que as elucubrações dos teólogos vítimas de um magistério infiel não arredem o entusiasmo dos fiéis para o restabelecimento da cristandade.

Pe. Thierry Gaudray, FSSPX

Notas:

[1] Padre Basile Valuet, “Les malentendus d’Écone sur la liberté religieuse”, Boletim de literatura eclesiástica, CXIV/3 (julho-setembro de 2013).

[2] Dom Marcel Lefebvre, Dubia sobre a liberdade religiosa enviada à Congregação para a Doutrina da Fé, 22 de maio de 19887.

[3] Idem.

[4] “Esse direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser reconhecido de tal modo que ele constitua um direito civil.” Dignitatis humanæ 2a.

[5] Padre Basile, op. cit.

[6] Pio XII, Ci Riesce, 6 de dezembro de 1953.

[7] Nesta hipótese, “a ordem pública justa” requerida pela constituição do Vaticano II para conceder a liberdade religiosa é, talvez, mais exigente que a simples “paz pública” mencionada na condenação contida em Quanta cura de Pio IX.

[8] Proposição condenada na encíclica Quanta cura, Dz 1689.

[9] Padre Basile, op. cit.

[10]Alocução à juventude democrata-cristã de Berlim ocidental, 28 de março de 1957.

[11] Padre Basile, op. cit.

[12] Suma teológica, III, q. 68, a.10, corpo do artigo.

[13] Idem na resposta à terceira objeção.