POR QUE D. LEFEBVRE NÃO ASSINOU A PROFISSÃO DE FÉ DO VATICANO EM 1989?

Em 19 de novembro de 1989, D. Lefebvre rezou a Missa do 60º aniversário de sua ordenação sacerdotal. Ele falou longa e magnificamente sobre o sacerdócio. Falou também sobre os inimigos do sacerdócio, especialmente as mudanças no espírito da Igreja, “… abrindo suas portas para todos aqueles que não compartilham nossa fé, dando-lhes a impressão de que não há diferenças entre eles e nós”.

Fonte: SSPX USA – Tradução: Dominus Est

D. Lefebvre prosseguiu dizendo que naquele momento ele não via a possibilidade de contatos regulares com Roma, porque Roma estava exigindo que, para quaisquer concessões a serem feitas, a FSSPX assinasse uma nova profissão de fé escrita em fevereiro de 1989. Ele equiparou fazer essa profissão com a aceitação explícita do Concílio Vaticano II e suas consequências que prejudicaram a Fé.[1] Se essa era uma questão tão importante, deveríamos perguntar…

O que é a Profissão de Fé de 1989?

Qualquer profissão de fé destina-se a proteger [a fé], destinada a ser uma fórmula específica para declarar explicitamente os ensinamentos da Igreja para serem aceitos por parte dos católicos. A Profissão de Fé de 1989 pede o consentimento dos católicos ao Credo Niceno-Constantinopolitano e a uma explicação adicional encontrada em 3 diferentes grupos de verdades.

O primeiro grupo de verdades é tudo o que o Magistério da Igreja propõe. Isso inclui tanto o Magistério Extraordinário da Igreja, seus “julgamentos solenes” e o Magistério ordinário, o que sempre foi ensinado em toda parte, mas nunca definido solenemente. A Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), ao explicar melhor o texto em 1998, deu como exemplo “a doutrina da presença real e substancial de Cristo na Eucaristia”. Essas verdades exigem um consentimento da Fé.[2]           

O segundo grupo de verdades é tudo o que a Igreja definitivamente propõe sobre fé e moral, cuja negação seria uma rejeição da doutrina católica. A todos é exigido um consentimento firme e definitivo a estas verdades, com base na fé na assistência do Espírito Santo ao Magistério da Igreja e na doutrina católica da infalibilidade do Magistério nestes assuntos.[3] Como exemplo, o CDF mencionou a ilicitude da eutanásia.[4]

O terceiro grupo de verdades apresentadas são os ensinamentos do Papa ou do Colégio dos Bispos exercendo seu autêntico Magistério. Esses ensinamentos exigem uma submissão religiosa da razão e da vontade.[5]

Tanto o primeiro quanto o segundo grupo de verdades fazem parte de qualquer profissão de fé… Ambos requerem consentimento por parte do crente, mas de um tipo diferente. Como diz a explicação do CDF:

“A diferença diz respeito à virtude sobrenatural da fé: no caso das verdades do primeiro parágrafo, o assentimento baseia-se diretamente na fé na autoridade da Palavra de Deus (doutrinas de fide credenda); no caso das verdades do segundo parágrafo, o assentimento baseia-se na fé na assistência do Espírito Santo ao Magistério e na doutrina católica da infalibilidade do Magistério (doutrinas de fide tenenda). [6]”

No entanto, o terceiro grupo introduz um termo, “Magistério autêntico”, que levanta uma questão…

É por isso que D. Lefebvre se opôs à Profissão de Fé de 1989?

Como D. Lefebvre disse em seu sermão, a Profissão de Fé de 1989 significaria aceitar o Vaticano II e suas consequências. Quando a Profissão exige a aceitação do Magistério autêntico no terceiro grupo de verdades, ela faz referência ao conceito daquele Magistério dado na Lumen Gentium do Vaticano II , repetindo o que se diz sobre ele.[7]

Tanto a Lumen Gentium quanto a Profissão exigem uma obediência religiosa da razão ao Magistério autêntico. Isso não significa que aquele que faz a profissão a aceite com o consentimento de um ato de fé. Ao contrário, a obediência religiosa é uma presunção de aceitação em favor do superior.

O Magistério Autêntico refere-se ao ensino feito de forma não definitiva por alguém que possa ensinar magistralmente. Uma explicação posterior publicada em 1998, sobre a Profissão de 1989, dizia que os ensinamentos do Magistério autêntico eram: “ensinamentos estabelecidos pelo Magistério ordinário autêntico de forma não definitiva, que requerem graus de adesão diferenciados de acordo com a razão e a vontade manifestada“[8].

Em uma entrevista em 1990, o então Cardeal Ratzinger deu como exemplo do Magistério autêntico as anteriores declarações dos Papas contra a liberdade religiosa.[9] Um exemplo pertinente dessas afirmações é que a “religião católica é a única religião verdadeira”.[10]

Uma vez que o Magistério autêntico não é infalível e é apenas uma presunção a favor de um superior, podemos perguntar: e se o superior ensinar algo contrário aos ensinamentos claramente definidos da Igreja? Nesse caso, os fiéis obviamente têm o direito de rejeitar o novo ensinamento. D. Paul Nau explica isso em seu ensaio Papa ou Igreja:

(O consentimento ao Magistério autêntico é) … de consentimento interior, não como de fé, mas como de prudência, cuja recusa não poderia escapar à marca da temeridade, a menos que a doutrina rejeitada fosse uma novidade real ou envolvesse uma manifesta discordância entre a afirmação pontifícia e a doutrina até então ensinada. [11]

Um exemplo de manifesta discordância pode ser encontrado na Lumen Gentium do Vaticano II. Lá está contida a famosa frase de que a Igreja de Cristo “subsiste” na Igreja Católica, ao invés de dizer que a Igreja de Cristo é a Igreja Católica.[12] A Igreja de Cristo seria algo subsistente na Igreja Católica como sujeito, mas não se encontraria exclusivamente ali. A sociedade sobrenatural fundada por Cristo para a salvação do homem também poderia ser encontrada em outros lugares. Portanto, a Igreja Católica não é idêntica à Igreja de Cristo e, portanto, a Igreja de Cristo pode se estender além dela.

Esse ensinamento encontra-se em um documento conciliar. Também está em contradição com o exemplo dado de Magistério autêntico apresentado em 1990, que a religião católica é a única religião verdadeira. Se a Igreja Católica é a única religião verdadeira, então como pode a Igreja de Cristo simplesmente subsistir nela e, portanto, ser potencialmente encontrada em outro lugar?

Quando existe uma doutrina que expressa uma “novidade real” ou uma “discordância manifesta” com a doutrina anterior, ela pode ser rejeitada. O Magistério autêntico da Lumen Gentium está em oposição ao Magistério autêntico do Syllabus. Qual devemos seguir?    

Em seu sermão, D. Lefebvre mencionou que a Profissão de Fé de 1989 trouxe um impasse com o Vaticano. Após sua morte, novas discussões ocorreram entre a FSSPX e Roma. Isso nos faz perguntar…

O que aconteceu com a Profissão de Fé de 1989 após a morte de D. Lefebvre?

Nas discussões subsequentes com Roma, o que havia sido solicitado à FSSPX mudou. A FSSPX não foi mais solicitada a fazer a Profissão de Fé de 1989! D. Fellay, em uma Conferência de 2016 em Port-Marly, França, explicou a mudança.

Com efeito, eles (representantes do Vaticano) abandonaram algumas coisas bastante importantes. Já não nos pedem para recitar a “profissão do cardeal Ratzinger”. Precisamente onde D. Lefebvre tropeçou em uma observação do cardeal Ratzinger que acrescentara algo à profissão de fé habitual. E este acréscimo diz respeito ao que chamamos de Magistério autêntico. O cardeal Ratzinger, na época, explicara que com esse acréscimo pediam a submissão religiosa aos documentos do Magistério autêntico, obrigando os católicos a aceitar o Concílio.

Isso pode ser discutido: é verdade per se que devemos uma submissão respeitosa a documentos magistrais, uma Encíclica, por exemplo. É normal receber este documento respeitosamente, uma vez que é emitido pela autoridade suprema. A frase em si não é chocante, é até católica. Mas claro, quando se faz a conexão com esse Concílio, começa a ficar mais estranha.

E, por isso, nós realmente nos abstivemos nesta profissão de fé. Bem, como se vê, eles já não exigem mais isso de nós! Pedem-nos que recitemos a antiga que se chama a profissão de fé tridentina de Pio IV. No documento, eles a chamam de “profissão dos Padres Conciliares”. Sim, os padres conciliares, ou seja, todos os bispos reunidos no Concílio Vaticano II, fizeram, no início da primeira sessão, uma profissão de fé que é a profissão de fé tradicional. Assim como a Missa celebrada durante o Concílio foi a Missa antiga…[13]”

D. Fellay prosseguiu dizendo que nossas objeções ao Vaticano II não significam que afirmamos que não há nada de verdadeiro nele. Nós objetamos contra o veneno contido nele.

“Mas o problema não são as coisas boas que você pode encontrar nele que, de fato, existem. O problema são as coisas ruins! Se você colocar uma gota de cianeto na sopa, que diferença faz se você adicionar bons vegetais, bom caldo, a melhor água que encontrar? A sopa não é comestível por causa do veneno. É o que acontece no Concílio. É por isso que dizemos que o Concílio é intragável. Não pelas coisas boas que se pode encontrar nele, mas pelo veneno. E, para ser mais preciso, esse veneno não está concentrado em toda parte, mas em um certo número desses documentos sobre os quais D. Pozzo nos diz hoje: “Vocês não são obrigados a aceitá-los para serem reconhecidos como católicos” [14].”

O próprio fato de Roma ter parado de exigir a Profissão de Fé de 1989 mostra que pelo menos aquilo a que a FSSPX se opõe está aberto a alguma discordância e que é possível questionar o Magistério autêntico. Se, então, alguma discordância é possível, talvez o que realmente deveríamos estar perguntando é…

O que devemos aceitar do ensino do Vaticano II e pós-Vaticano II?

O ensinamento da Igreja é o Magistério, testemunho dado com autoridade em nome de Cristo. É uma autoridade delegada, definida e limitada pela salvaguarda e explicação das verdades divinamente reveladas. A autoridade eclesial não pode ir contra essas verdades do Magistério. O que dizem os bispos, ou mesmo o Papa, não pode ir contra as verdades do Magistério.[15]

Então, o que devemos pensar de declarações feitas por clérigos que são, no mínimo, extremamente problemáticas? Por exemplo:

A Exortação pós-sinodal Amoris Laetitia não deixou ninguém indiferente. Mas, aparentemente, segundo o próprio Papa, a única interpretação possível do capítulo 8 do documento é aquela dada pelos bispos de Buenos Aires, na Argentina, que afirmam abertamente que certos casais divorciados e recasados ​​podem ter acesso aos sacramentos. “O documento é muito bom e explica completamente o significado do Capítulo VIII da Amoris Laetitia; não há outras interpretações”, respondeu o Papa em uma carta escrita em setembro de 2016. E em junho passado, a Secretaria de Estado do Vaticano reconheceu esta resposta como parte do “magistério autêntico”.[16]

A própria natureza da autoridade eclesial é salvaguardar o que é divinamente revelado. O Magistério autêntico pode incluir novidades que vão contra o magistério anterior, como podemos ver claramente no exemplo acima mencionado. Quando isso acontece, devemos ser autorizados a reter o consentimento.

A fé é um ato da razão, embora mais obscuro por envolver os mistérios de Deus. É um consentimento da razão ao invisível. Como qualquer processo racional, ele pode discernir o que se opõe a ele. Portanto, um fiel católico pode rejeitar o que é contrário ao ensinamento constante da Igreja no Vaticano II ou aos ensinamentos pós-conciliares. A religião católica continua sendo a única, a verdadeira religião, e o divórcio vai contra a natureza do matrimônio, independentemente da idade.

A natureza imutável da Fé Católica torna o único curso de ação lógica para julgar os ensinamentos do Vaticano II e pós-Vaticano II à luz da Tradição. Como o próprio D. Lefebvre nos disse:

“Considerando a mim, a nós, penso que dizer que os documentos conciliares devem ser julgados à luz da Tradição significa obviamente que o que contradiz a Tradição deve ser rejeitado, o que é ambíguo deve ser interpretado de acordo com a Tradição, e o que está em conformidade com a Tradição deve ser aceito” (2 de dezembro de 1982).[17]”

Mantemos uma fé autêntica e imutável     

 Uma profissão de fé adequada é a profissão da fé imutável que o infalível Magistério da Igreja transmite. O Magistério autêntico apresentado tal como era em 1989 permite afirmar uma coisa num século e outra no século seguinte, e tudo isto sob o disfarce de um “dever pastoral num momento particular” [18].

D. Lefebvre também nos diria que temos o dever, como católicos, de pensar!

“Cabe a cada cristão, a cada católico, julgar o que é verdadeiro. A ele é ensinada a verdade, ele conhece a verdade – está no catecismo. Ele sabe ler como todo mundo: é perfeitamente capaz de ler as Atas dos Concílios: é perfeitamente capaz de compreender e saber qual é a verdade que é ensinada no catecismo e em sua Bíblia e perceber que o que agora está sendo pregado por seus párocos, ou mesmo pelo bispo, não está em conformidade com o que é dito em seu antigo catecismo ou com o que lhe foi ensinado. Cabe a todo católico defender sua fé quando ela é atacada” (11 de setembro de 1976).[19]”

Esse dever de pensar não pode ser revogado pela imposição de coisas que não são da Fé. A Tradição e o Magistério da Igreja andam juntos. Quando há uma aparente discordância entre eles, um deles não deve estar realmente lá. A Fé que professamos resiste ao passar dos séculos.

Observe que D. Lefebvre faz referência ao que foi ensinado no catecismo e ao que foi ensinado pelos papas. Esses ensinamentos são pontos de referência objetivos para o que os católicos acreditam.

O que aconteceria na prática a um fiel católico se ele aceitasse sem pensar todas as afirmações do Magistério autêntico? Para ele, a religião católica seria a única religião verdadeira em uma década e a Igreja de Cristo subsistiria na Igreja Católica e, portanto, também seria encontrada em outros lugares na década seguinte. O casamento seria vitalício e o divórcio proibido em um momento e a comunhão poderia ser dada aos divorciados recasados em um momento posterior. A Tradição imutável da Igreja Católica transmitida pelo Magistério seria degradada por algo que se chama Magistério!

D. Lefebvre disse em seu sermão do 60º aniversário de sua ordenação que precisamos professar nossa fé. Ele dá como exemplo de profissão da Fé o final do Juramento Anti-Modernista de São Pio X:

“Mantenho firmissimamente a fé dos Padres e a manterei até o último sopro da minha vida sobre o carisma certo da verdade, que está, esteve e sempre estará na sucessão do episcopado desde os Apóstolos; não para que se sustente o que mais bem e mais apto possa parecer conforme à cultura de cada idade, mas para que nunca se creia de outro modo, nunca de outro modo se entenda a verdade absoluta e imutável pregada desde o princípio pelos Apóstolos..[20]”

O que D. Lefebvre repete nunca poderia ser mais verdadeiro. O verdadeiro Magistério é a transmissão de uma verdade imutável. Não importa quem esteja falando, professar qualquer outra coisa é se envolver na confusão de um Magistério “não muito autêntico”.

[1] https://www.sspxasia.com/Documents/Archbishop-Lefebvre/Archbishops-Sermo…

[2] https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con…

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Lumen Gentium , cap. 3, n. 25

[8] https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con…

[9] Cardeal Joseph Ratzinger, “A teologia não é uma ideia privada do teólogo,” L’Osservatore Romano, English Weekly Edition, 2 de julho de 1990, 5

[10] Syllabus de Pio IX, proposição 21

[11] Nau, Papa ou Igreja? pág. 29

[12] Lumen Gentium I, 8

[13] D. Fellay, Concílio Pastoral Aberto ao Debate, Conferência proferida em Port-Marly (França), 8 de outubro de 2016

[14] Ibidem.

[15] Pe. Gleize, Uma Questão de Princípio, The Angelus, julho-agosto de 2018

[16] Ibidem.

[17] Ibidem.

[18] Cardeal Joseph Ratzinger, “A teologia não é uma ideia privada do teólogo,” L’Osservatore Romano , English Weekly Edition, 2 de julho de 1990, 5

[19] Pe. Gleize, Magistério e Fé, The Angelus, setembro-outubro 2012

[20] https://www.sspxasia.com/Documents/Archbishop-Lefebvre/Archbishops-Sermo…