O QUE É A VERDADEIRA TRADIÇÃO? A VISÃO DE SÃO VICENTE DE LERINS

São Vicente de Lérins, um grande pensador, teólogo e místico

Fonte: Courrier de Rome  n.º 308, Fevereiro de 2008 – Tradução: Dominus Est

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Em obra recentemente publicada em março de 2007, o Padre Bernard Lucien dedica seis estudos à questão da autoridade do Magistério e da infalibilidade. O último desses estudos é o assunto de um capítulo 6 até então inédito, visto que os cinco estudos anteriores são uma reapresentação de artigos já publicados na revista Sedes sapientiae. Entre outras coisas, ele diz: «O que sustentamos aqui, e que diversos autores “tradicionalistas” negam, é que a infalibilidade do Magistério ordinário universal respalda a afirmação central de Dignitatis humanae, afirmação essa contida no primeiro parágrafo de DH, 2 e que aqui lembramos: “Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer”»[1].

1) Liberdade religiosa: um ensinamento infalível do Magistério ordinário universal?

O Pe. Lucien afirma ali que o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa é um ensinamento infalível porque equivale a um ensinamento do Magistério ordinário universal.

Sabemos que o Papa pode exercer o Magistério de maneira infalível e que o faz ora sozinho ora junto dos bispos. Essa infalibilidade é uma propriedade que diz respeito precisamente a um certo exercício da autoridade. Pode-se assim distinguir três circunstâncias únicas nas quais a autoridade suprema goza de infalibilidade. Há o ato da pessoa física do Papa que fala sozinho ex cathedra; há o ato da pessoa moral do Concílio ecumênico, que é a reunião física do Papa e dos bispos; há o conjunto dos atos, unânimes e simultâneos, que emanam de todos os pastores da Igreja, o Papa e os bispos, porém dispersos e não mais reunidos. O ensinamento do Papa falando ex cathedra e aquele do Concílio ecumênico correspondem à infalibilidade do Magistério solene ou extraordinário, enquanto que o ensinamento unânime de todos os bispos dispersos, sob a autoridade do Papa, é o ensinamento do Magistério ordinário universal.

A questão do Magistério ordinário universal é abordada na constituição dogmática Dei Filius, do Concílio Vaticano I. Lá é dito que «deve-se crer com fé divina e católica todas aquelas coisas que estão contidas na Palavra de Deus, escrita ou transmitida por Tradição, e que a Igreja nos propõe, ou por definição solene, ou pelo magistério ordinário universal, a serem cridas como divinamente reveladas» (DS 3011). E na Encíclica Tuas libenter, de 21 de dezembro de 1862, o Papa Pio IX fala do «Magistério ordinário de toda a Igreja disseminada pelo orbe terrestre» (DS 2879). Na ocasião do Concílio Vaticano I, em um discurso proferido no dia 6 de abril de 1870[2], o representante oficial do Papa, Mons. Martin, dá a seguinte precisão acerca do texto de Dei Filius: «A palavra “universal” significa geralmente a mesma coisa que a palavra usada pelo Santo Padre na Encíclica Tuas libenter, a saber, o Magistério de toda a Igreja disseminada sobre a terra». Está claro, portanto, que o Magistério ordinário universal está em contraste com o Magistério do Concílio ecumênico assim como o Magistério do Papa e dos bispos dispersos está em contraste com o Magistério do Papa e dos bispos reunidos. Continuar lendo

A PROPÓSITO DE SÃO VICENTE DE LÉRINS

São Vicente de Lérins, um grande pensador, teólogo e místico

Fonte: Courrier de Rome  n.º 308, Fevereiro de 2008 – Tradução: Dominus Est

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Em obra recentemente publicada em março de 2007, o Padre Bernard Lucien dedica seis estudos à questão da autoridade do Magistério e da infalibilidade. O último desses estudos é o assunto de um capítulo 6 até então inédito, visto que os cinco estudos anteriores são uma reapresentação de artigos já publicados na revista Sedes sapientiae. Entre outras coisas, ele diz: «O que sustentamos aqui, e que diversos autores “tradicionalistas” negam, é que a infalibilidade do Magistério ordinário universal respalda a afirmação central de Dignitatis humanae, afirmação essa contida no primeiro parágrafo de DH, 2 e que aqui lembramos: “Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer”»[1].

1) Liberdade religiosa: um ensinamento infalível do Magistério ordinário universal?

O Pe. Lucien afirma ali que o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa é um ensinamento infalível porque equivale a um ensinamento do Magistério ordinário universal.

Sabemos que o Papa pode exercer o Magistério de maneira infalível e que o faz ora sozinho ora junto dos bispos. Essa infalibilidade é uma propriedade que diz respeito precisamente a um certo exercício da autoridade. Pode-se assim distinguir três circunstâncias únicas nas quais a autoridade suprema goza de infalibilidade. Há o ato da pessoa física do Papa que fala sozinho ex cathedra; há o ato da pessoa moral do Concílio ecumênico, que é a reunião física do Papa e dos bispos; há o conjunto dos atos, unânimes e simultâneos, que emanam de todos os pastores da Igreja, o Papa e os bispos, porém dispersos e não mais reunidos. O ensinamento do Papa falando ex cathedra e aquele do Concílio ecumênico correspondem à infalibilidade do Magistério solene ou extraordinário, enquanto que o ensinamento unânime de todos os bispos dispersos, sob a autoridade do Papa, é o ensinamento do Magistério ordinário universal.

A questão do Magistério ordinário universal é abordada na constituição dogmática Dei Filius, do Concílio Vaticano I. Lá é dito que «deve-se crer com fé divina e católica todas aquelas coisas que estão contidas na Palavra de Deus, escrita ou transmitida por Tradição, e que a Igreja nos propõe, ou por definição solene, ou pelo magistério ordinário universal, a serem cridas como divinamente reveladas» (DS 3011). E na Encíclica Tuas libenter, de 21 de dezembro de 1862, o Papa Pio IX fala do «Magistério ordinário de toda a Igreja disseminada pelo orbe terrestre» (DS 2879). Na ocasião do Concílio Vaticano I, em um discurso proferido no dia 6 de abril de 1870[2], o representante oficial do Papa, Mons. Martin, dá a seguinte precisão acerca do texto de Dei Filius: «A palavra “universal” significa geralmente a mesma coisa que a palavra usada pelo Santo Padre na Encíclica Tuas libenter, a saber, o Magistério de toda a Igreja disseminada sobre a terra». Está claro, portanto, que o Magistério ordinário universal está em contraste com o Magistério do Concílio ecumênico assim como o Magistério do Papa e dos bispos dispersos está em contraste com o Magistério do Papa e dos bispos reunidos. Continuar lendo