A COVARDIA É UM PECADO E, EM ALGUNS CASOS, MUITO GRAVE.

Aplacar a tempestade | Paiva Netto

Pe. Leonardo Castellani

No quarto domingo depois da Epifania, a Igreja lê, na Missa, a narração da Tempestade no mar, que é contada pelos três Sinópticos, segundo o texto mais breve de todos, que é o de São Mateus: tem apenas quatro versículos, mas a narração é feita com energia tão formidável, que parece um gravado em cobre ou madeira, com quatro traços principais. São Mateus é o mais saboroso e enérgico dos três Sinópticos. A Bíblia de Bover-Cantera diz: “Este Evangelho pertence à literatura escrita; o de Marcos, à oral”. É um erro grave que denota muito atraso em exegese. Com toda certeza, os quatro Evangelhos pertencem ao gênero que hoje lingüistas, etnólogos e psicólogos chamam estilo oral; e foram recitados de memória antes de serem fixados em pergaminho — ao menos os três primeiros — como as rapsódias de Homero, o Vedanta, o Corão, o Poema del Myo Cid e, em realidade, quase todos os monumentos religiosos ou épicos da Antiguidade. Esta noção, que hoje em dia se possui cientificamente, resolve de um golpe a falsa Questão Sinóptica, que preocupou a eruditos durante dois séculos; e que consiste em terem os Evangelhos, por um lado, algumas diferenças entre si e, por outro, uma concordância maciça; como pode se ver neste relato que os três Sinópticos trazem. Isto deu causa a uma confusão enorme na cabeça dos sábios alemães, alguns dois quais chegaram a negar a autenticidade destes três documentos religiosos, até que Marcel Jousse descobriu as admiráveis leis do estilo oral. 

Coisa incrível: há uma tempestade tal no Mar de Tiberíades, que as ondas invadem a barca dos pescadores; e Jesus Cristo dorme. Fingiria dormir, como dizem alguns, para “provar seus discípulos”? Não, dorme, com a cabeça apoiada em um banco. Essa maneira de experimentar os outros com coisas fingidas é uma palhaçada inventada por algum mal mestre de noviços: a única coisa que prova verdadeiramente é a vida, a verdade, a realidade; não as ficções. Tampouco é verdade que Deus tenha proibido a Eva o Fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal para prová-la; proibiu-o porque, simplesmente, este fruto não lhe convinha, nem a ela nem a ninguém. Deus não faz tolices, mas há gente inclinada a atribuir-Lhe as tolices próprias. Deus fez o homem a sua imagem e semelhança; mas o homem retribuiu; porque, quantas vezes o homem não refez a Deus à sua imagem e semelhança!

Jesus Cristo é notável: dorme de dia, no meio de uma tormenta; e de noite deixa a cama e sobe até uma colina, para rezar até a madrugada. Não o despertam o bramir do vento, o golpe da água, os gritos dos marinheiros mas, à noite, o desperta um gemido ou uma mulher com hemorragia que lhe toca o vestido. Dona Madalena, minha avó, dizia: “Jesus Cristo é bom, não digo nada, mas, quem O pode entender?” Só uma criança ou uma animal podem dormir nestas condições em que os três Evangelistas dizem que Cristo realmente “dormia“; e também um homem que esteja tão cansado como um animal e que tenha uma natureza tão sã como a de um menino. Sabemos que muitos homens de natureza privilegiadamente robusta podiam dormir quando quisessem; como Napoleão I, por exemplo, do qual se conta que podia fazer isto: dormir quando lhe parecia bem, sobretudo nos sermões; e foi preciso despertá-lo na manhã da batalha de Austerlitz. Ao contrário, Napoleão III, seu sobrinho, não pregou os olhos na noite do golpe de Estado de 1851 e se levantou três vezes para ver se tinha dormido a sentinela. Isso porque Napoleão I foi um herói; mas, Napoleão III, uma imitação de herói: um palhaço. Continuar lendo