JESUS PRESENTE NOS ALTARES PARA SER ACESSÍVEL A TODOS

taberVenite ad me omnes, qui laboratis et onerati estis; et ego reficiam Vos ― “Vinde a mim todos os que estais cansados e carregados e eu vos aliviarei” (Matth. 11, 28).

Sumário. Nesta terra não é permitido a todos os súditos falar ao príncipe. O mais que os pobres podem esperar é falar-lhe por meio de terceira pessoa. Não é assim com o Rei do céu, que está no Santíssimo Sacramento. Com este pode falar quem o deseje, e sem acanhamento. Procuremos, portanto, ir muitas vezes à sua audiência e expor-Lhe todas as nossas necessidades. Peçamos-Lhe particularmente que desligue o nosso coração de todas as coisas terrestres e o encha do seu santo amor.

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Dizia Santa Teresa que nesta terra não é permitido a todos os súditos falar a seu príncipe. O mais que os pobres podem esperar é falhar-lhe por meio de terceira pessoa. Mas para conversar convosco, ó Rei do céu, não se precisa de terceira pessoa; quem quiser, pode achar-Vos no Santíssimo Sacramento, e falar-Vos à vontade e sem acanhamento. Por isso a mesma Santa dizia que Jesus Cristo velou a sua majestade sob as aparências do pão, para nos inspirar mais confiança e nos tirar todo o temor de nos aproximarmos d’Ele.

Ah! Parece que lá dos altares Jesus ainda cada dia exclama e diz: Venite ad me omnes, qui laboratis et onerati estis, et ego reficiam vos ― “Vinde a mim todos os que estais cansados e carregados, e eu vos aliviarei”. Vinde a mim, vós pobres, vinde enfermos, vinde atribulados, vinde justos e pecadores; em mim achareis o remédio para todos os vossos males e aflições. O que Jesus Cristo deseja é consolar a quem a Ele recorre. Permanece presente sobre os altares tanto de dia como de noite para ser acessível a todos e comunicar a todos as suas graças.

Por isso os santos achavam na terra tão grande satisfação em estar na presença de Jesus sacramentado, que os dias e noites se lhes afiguravam como instantes. A condessa de Feria, depois de entrada na ordem de Santa Clara, nunca se fartava de ficar no coro a visitar o Santíssimo Sacramento. Perguntada uma vez o que fazia tanto tempo diante do santo Tabernáculo, respondeu que eram tão grandes as delícias que nisso gozava, que queria ficar ali toda a eternidade. ― São João Francisco Regis, depois de passar o dia no confessionário ou no púlpito, passava as noites na igreja, e achando-a alguma vez fechada, deixava-se ficar à porta exposto ao frio e ao vento, para ao menos de longe fazer companhia a seu amado Senhor. São Felipe Neri exclamava à vista do Santíssimo Sacramento: “Eis aí o meu amor! Eis aí todo o meu amor!” Ah! Se Jesus Cristo fosse também todo o nosso amor, a nós também os dias e noites passadas na sua presença se nos afigurariam como instantes! Continuar lendo

DA DIGNIDADE DE SÃO JOSÉ, ESPOSO DA VIRGEM MARIA

joseIacob autem genuit Ioseph, virum Mariae, de qua natus est Iesus ― “Jacob gerou a José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus” (Matth. 1, 16)

Sumário. Para formarmos uma idéia da dignidade de São José, basta ponderarmos que, na qualidade de esposo de Maria e chefe da sagrada Família, tinha verdadeiros direitos sobre a Mãe de Deus e seu divino Filho, que assumiram a obrigação de lhe obedecer, e lhe obedeceram em tudo. Quanto devemos, pois, honrar àquele a quem Deus honrou tanto! Quanto devemos confiar na eficácia de sua proteção! ― E tu, és-lhe realmente devoto?… Recorres prontamente a ele em tuas necessidades?

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Considera em primeiro lugar a dignidade de São José por ser esposo de Maria. Nesta qualidade adquiriu o direito de lhe dar ordens, e Maria, na qualidade de esposa, assumiu a obrigação de obedecer a São José. O humílimo São José nunca se serviu de mandos para com a santa Virgem, mas somente de pedidos, por venerar nela a grande santidade e a dignidade de Mãe de Deus. A humílima Esposa, porém, entre todas as criaturas a mais humilde, considerava sempre aqueles pedidos como outras tantas ordens. ― Ó Maria, ó José, ó Esposos santíssimos, que por vossa grande humildade vos fizestes tão amados de Deus, suplico-vos que me alcanceis o perdão de todos os meus atos de soberba, e a graça de sofrer d’aqui por diante com paciência todos os desprezos e injúrias que me vierem da parte dos homens, porquanto hei merecido ser pisado aos pés dos demônios no inferno.

Considera em segundo lugar a alta dignidade de São José por lhe ser conferido por Deus o ofício de pai de Jesus Cristo: Et erat subditus illis (1) ― “E era-lhes submisso”. Quem é que estava submisso? O Rei do mundo, o Filho de Deus e também verdadeiramente Deus todo-poderoso, eterno, perfeito, em tudo igual ao Pai. Este é quem na terra quis estar submisso a São José. Por si mesmo não tinha José autoridade sobre Jesus, por não ser o pai verdadeiro, mas tão somente o pai putativo. Como esposo, porém, e chefe de Maria, foi o chefe também de Jesus Cristo, enquanto homem, por ser o fruto das entranhas de Maria. Quem é dono de uma árvore, o é também dos frutos.

Eis porque a Beata Virgem o chamou pai de Jesus: Pater tuus et ego dolentes quaerebamos te (2) ― “Eu e teu pai angustiados te procuramos”. Continuar lendo

DA MISERICÓRDIA DE DEUS – PONTO I

Resultado de imagem para rezando igrejaSuperexaltat autem misericordia judicium. – “A misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2,13)

A bondade é comunicativa por natureza, isto é, tende a transmitir aos outros os seus bens. Deus, que por sua natureza é a bondade infinita, sente vivo desejo de comunicar-nos sua felicidade e, por isso, propende mais à misericórdia do que ao castigo. Castigar — diz Isaías — é obra alheia às inclinações da vontade divina.

“Levantar-se-á para fazer a sua obra (ou vingança), obra que lhe é alheia, obra que lhe é estranha” (Is 28,21).

Quando o Senhor castiga nesta vida, é para fazer misericórdia na outra (Sl 59,3). Mostra-se irritado a fim de que nos emendemos e detestemos o pecado (Sl 5). Se nos manda algum castigo, é porque nos ama e nos quer livrar das penas eternas (Sl 6). Quem poderá admirar e louvar suficientemente a misericórdia com que Deus trata os pecadores, esperando-os, chamando-os, acolhendo-os quando voltam para Ele?… E antes de tudo, que graça valiosíssima nos concede Deus em esperar pela nossa penitência!… Quando o ofendeste, meu irmão, o Senhor te podia ter feito morrer, mas, ao contrário, te esperou; e, em vez de castigar-te, te cumulou de bens e te conservou a vida em sua paternal providência. Fingia não ver teus pecados, a fim de que te convertesses (Sb 2,24).

E como é isto, Senhor! Vós que não podeis ver um só pecador, vedes tantos e vos calais? (Hb 1,15). Vedes aquele impudico, aquele vingativo, esse blasfemo, cujos pecados crescem dia-a-dia e não os castigais? Por que tanta paciência?… Deus espera o pecador, a fim de que se arrependa e desse modo lhe perdoe e o salve (Is 30,18). Continuar lendo

EFEITOS QUE EM NÓS PRODUZ A DIVINA GRAÇA

graInfinitus thesaurus est hominibus; quo qui usi sunt, participes facti sunt amicitiae Dei ― Ela é um tesouro infinito para os homens; do qual os que usaram têm sido feito participantes da amizade de Deus”.

Sumário. Porque havemos de ter inveja dos grandes do mundo? Se estamos na graça de Deus, participamos da sua própria natureza; somos, por assim dizer, um com Ele e de momento a momento podemos adquirir tesouros imensos de merecimentos para a eternidade. A nossa alma é então tão bela aos olhos do Senhor, que põe nela a sua complacência. Tudo isto Jesus Cristo no-lo mereceu pela sua Paixão; e por isso devemos prestar-Lhe contínuas ações de graças.

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No dizer de Santo Tomás de Aquino, o dom da graça é superior a todos os dons que uma criatura possa receber, porque a graça é a participação da própria natureza de Deus. Já antes tinha São Pedro dito o mesmo: Ut per haec (promissa) efficiamini divinae consortes naturae(1) ― “Para que por elas (as promessas) vos torneis participantes da natureza divina“. Tal é a dignidade que Jesus Cristo nos mereceu pela sua paixão: Ele nos comunicou o mesmo resplendor que recebeu de Deus (2). Numa palavra, quem está na graça de Deus, forma, de certo modo, uma pessoa com Deus: Unus spiritus est(3) ― “É um espírito com Ele”. E, como disse o Redentor, na alma que ama a Deus, vem habitar a Santíssima Trindade: Ad eum veniemus, et mansionem apud eum faciemus (4) ― “Viremos a ele, e faremos nele morada”.

É tão bela aos olhos de Deus a alma em estado de graça, que Ele próprio lhe faz o elogio: Como és formosa amiga minha, como és formosa! (5) Parece que Deus não pode apartar dela os olhos, nem cerrar os ouvidos a nenhum dos seus pedidos: Oculi Domini super iustos, et aures eius ad preces eorum (6) ― “Os olhos do Senhor estão sobre os justos e os seus ouvidos abertos aos rogos deles”. Dizia Santa Brígida que nenhum homem poderia ver a beleza de uma alma na graça de Deus, sem morrer de alegria. E Santa Catarina de Sena, tendo visto uma alma assim, afirmou que de boa mente daria a vida para que nunca aquela alma perdesse tamanha beleza. Por isso a mesma Santa beijava a terra que os sacerdotes pisaram, pensando que pelo seu ministério as almas eram colocadas na graça de Deus. Continuar lendo

COMO DEVEMOS PREPARAR-NOS PARA A MORTE

cemiterioDispone domui tuae, quia morieris tu et non vives — “Dispõe de tua casa, porque morrerás e não viverás” (Is. 38, 1).

Sumário. A experiência prova que morrem felizmente os que, no último momento, estão já mortos para o mundo, isto é, desligados dos bens de que nos deve separar a morte. É, pois, preciso que desde já aceitemos a privação dos bens, a separarção dos parentes e de todas as coisas da terra, lembrando-nos que, se não o fizermos voluntariamente agora, necessariamente teremos de o fazer na morte, mas com risco da salvação eterna. Quem ainda não escolheu um estado de vida, tome aquele que houvera querido escolher na hora da morte.

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Diz Santo Ambrósio que morrem felizmente os que, no tempo da sua morte, estão já mortos para o mundo, isto é, desligados daqueles bens de que forçosamente os deve separar a morte. Mister, pois, se torna que desde já aceitemos a privação dos bens, a separação dos parentes e de todas as coisas da terra. Se não fizermos isto voluntariamente durante a vida, seremos forçados a fazê-lo na morte, mas então com extrema dor e com risco da salvação eterna.

A este propósito observa Santo Agostinho que, para morrer em paz, é vantajosíssimo pormos em ordem durante a vida os negócios temporais, fazendo desde já a disposição dos bens que é preciso deixar, a fim de não termos de nos ocupar então senão da nossa união com Deus. — Naquela hora convém que só se fale em Deus e no paraíso. Os últimos momentos da vida são demasiadamente preciosos para serem desperdiçados em pensamentos terrestres. É na morte que se acaba a coroa dos escolhidos, porque é então que se recolhe a maior soma de merecimentos, aceitando os sofrimentos e a morte com resignação e amor.

Semelhantes sentimentos, porém, não os poderá ter na morte quem não os tiver excitado durante a vida. Com este fim, pessoas devotas têm por hábito renovarem todos os meses a protestação da boa morte com os atos cristãos de fé, esperança e caridade, com a confissão e comunhão, como se já estivessem no leito de morte, próximas a saírem deste mundo. Oh, como esta prática nos ajudará a caminharmos bem, a nos desprendermos do mundo e morrermos de boa morte! Beatus ille servus, quem, cum venerit dominus eius, inveniet sic facientem (1) — “Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, encontre a fazer isto. Continuar lendo

SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA: A TRANSFIGURAÇÃO DE JESUS CRISTO E AS DELÍCIAS DO PARAÍSO

transfDomine, bonum est nos hic esse — “Senhor, é bom estarmos aqui” (Matth. 17, 4).

Sumário. Consideremos hoje a beleza do paraíso e raciocinemos assim: São Pedro e os seus felizes companheiros provaram apenas uma só gota da doçura celestial; não viram senão um raio da divindade. Todavia ficaram de tal modo arrebatados, que desejavam permanecer ali para sempre. O que será então de nós, quando nos saciarmos na fonte das delícias e virmos a Deus tal qual é, face a face? Para chegarmos a tão grande recompensa, devemos antes de mais nada combater e sofrer alguma coisa na terra.

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I. No Evangelho de hoje, lemos que certo dia Nosso Senhor, querendo dar a seus discípulos um antegozo da beleza do paraíso, “tomou consigo a Pedro, a Tiago e a João seu irmão, e os conduziu de parte a um alto monte e transfigurou-se diante deles. O seu rosto ficou refulgente como o sol, e suas vestiduras se fizeram brancas como a neve. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com Ele. E tomando a palavra, disse Pedro a Jesus: Senhor, bom é que estejamos aqui: se queres, façamos três tabernáculos, um para ti, outro para Moisés e outro para Elias: Domine, bonum est nos hic esse.

Detenhamo-nos também a considerar um pouco a beleza do paraíso e raciocinemos assim: São Pedro e os seus felizes companheiros provaram apenas uma só gota da doçura celestial e nem assim puderam conter-se que não rogassem a Jesus, lhes fosse concedido permanecerem sempre naquele lugar. Que será então de nós, quando o Senhor saciar os seus escolhidos da abundância de sua casa e os fizer beber na torrente das suas delícias? (1) São Pedro e os outros dois apóstolos não viram senão um único raio da divindade de Jesus Cristo, o qual transluziu da sua sagrada humanidade. Todavia, não podendo sustentar tão viva luz, ficaram deslumbrados, e como fora de si, caíram de bruços sobre a terra. Que será então quando o Senhor se deixar ver a seus escolhidos face a face, como é em si mesmo? — Tão bela sorte nos espera também a nós, meu irmão, se nos esforçamos por merecê-la ao menos no tempo de vida que ainda nos resta.

Ó doce esperança! Virá um dia em que nós também veremos a Deus como é, isto é, veremos a beleza incriada, que encerra, de modo infinitamente perfeito, todas as belezas espalhadas pelo universo: Similes ei erimus, quoniam videbimus eum sicuti est (2) — “Seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como é. Continuar lendo

SEGUNDA DOR DE MARIA SANTÍSSIMA — FUGIDA PARA O EGITO

Resultado de imagem para fuga para o egitoAccipe puerum et matrem eius, et fuge in Aegyptum — “Toma o Menino e sua Mãe, e foge para o Egito” (Matth. 2, 13).

Sumário. A profecia de São Siemão acerca da Paixão de Jesus e das dores de Maria começou desde logo a realizar-se na fugida que teve de fazer para o Egito, a fim de subtrair o Filho à perseguição de Herodes. Pobre Mãe! Quanto não devia ela sofrer tanto na viagem como durante a sua permanência naquele país entre os infiéis! Vendo a Sagrada Família na sua fugida, lembremo-nos que nós também somos peregrinos sobre a terra. Para sentirmos menos os sofrimentos do exílio, à imitação de São José tenhamos conosco no coração a Jesus e Maria.

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Como cerva, que ferida pela flecha, aonde vai leva a sua dor, trazendo sempre consigo a flecha que a feriu; assim a divina Mãe, depois da profecia funesta de São Simeão, levava sempre consigo a sua dor com a memória contínua da paixão do Filho. Tanto mais, que aquela profecia começou desde logo a realizar-se na fugida que o Menino Jesus teve de fazer para o Egito, a fim de se subtrair à perseguição de Herodes: Surge et accipe puerum et matrem eius et fuge in Aegyptum— “Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe, e foge para o Egito.

Que pena, exclama São João Crisóstomo, devia causar ao Coração de Maria, o ouvir a intimação daquele duro exílio com seu Filho! “Ó Deus”, disse então Maria suspirando, como contempla o Bem-aventurado Alberto Magno, “deve, pois fugir dos homens aquele que veio a salvar os homens?”

Cada um pode considerar quanto padeceu a Santíssima Virgem naquela viagem. A estrada, conforme à descrição de São Boaventura, era áspera, desconhecida, cheia de bosques, pouco frequentada, e sobretudo muito longa, de modo que a viagem foi ao menos de trinta dias. O tempo era de inverno; por isso tiveram de viajar com neves, chuvas e ventos, por caminhos arruinados cheios de lama, sem terem quem os guiasse ou servisse. Maria tinha então quinze anos, e era uma donzela delicada, não acostumada a semelhantes viagens. Que dó fazia ver aquela Virgenzinha com o Menino nos braços e acompanhada somente de São José! Continuar lendo

COMEMORAÇÃO DA LANÇA E DOS CRAVOS DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

123Unus militum lancea latus eius aperuit, et continuo exivit sanguis et aqua ― “Um dos soldados abriu-Lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água” (Io. 19, 34).

Sumário. Sendo o coração um dos primários órgãos da vida, claro está que tem parte principal nos afetos do homem, tanto nos bons como nos maus. Exatamente para sarar esta raiz viciada dos pecados, quis Jesus Cristo que seu Coração fosse traspassado pela lança, assim como pouco antes, para expiar a culpa de Adão em estender a mão ao fruto vedado, e para reparar os abusos da liberdade, quis que as mãos e os pés lhe fossem traspassados pelos cravos. Ó inventos admiráveis do amor de Deus! E nós não amaremos?

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Reflete um devoto escritor que na Paixão de Jesus Cristo tudo foi excesso assombroso. Hebreus e Gentios, sacerdotes e seculares, todos juntos conspiraram para fazê-Lo, como o predissera Isaías, o homem de dores e de desprezos. Causa horror a consideração do complexo de maus tratos e injúrias que fizeram Jesus sofrer em menos da metade de um dia, desde a captura até à morte. Mas quem não esperaria que ao menos depois da morte teriam deixado de ultrajá-Lo? Todavia não sucedeu assim.

Refere São João, que os Judeus, para não deixarem os corpos na cruz durante o sábado de Páscoa, pediram a Pilatos que mandasse quebrar as pernas aos supliciados e que os fizessem descer da cruz (1). Eis que Maria, enquanto está chorando a morte do Filho, vê alguns homens, armados de barras de ferro, que se avizinham de Jesus. À tal vista, primeiramente tremeu de espanto, depois disse assim, como medita São Boaventura: Parai; ah! Meu Filho já está morto! Deixai de o injuriar e deixai também de me atormentar mais a mim, sua pobre Mãe! Mas, enquanto está assim falando, vê, ó Deus! Um soldado que vibra com ímpeto uma lança e com ela abre o lado de Jesus: Unus militum lancea latus eius aperuit.

A esse golpe tremeu a cruz, o Coração de Jesus ficou dividido e saiu sangue e água. Não havia mais sangue além daquelas gotas restantes, que o Salvador também quis derramar, para nos fazer entender que não tinha mais sangue para nos dar. A injúria daquela lançada foi de Jesus, mas a dor foi toda de Maria Santíssima. Continuar lendo

QUANTO JESUS DESEJA UNIR-SE CONOSCO NA SANTA COMUNHÃO

eucarDesiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar ― «Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes que padeça» (Luc 22, 15).

Sumário. Nenhuma abelha esvoaça com tanta avidez sobre as flores para lhes sorverem o mel, como Jesus vai morar nas almas que o desejam. Eis porque no Evangelho nos convida tantas vezes a que nos aproximemos dele na santa Comunhão. Faz tantas promessas e tantas ameaças, para manifestar o grande desejo que tem de unir-se conosco. Que ingratidão, pois, se não correspondemos a tão grande amor!

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Jesus Cristo chama hora sua a noite em que devia começar a sua paixão. Mas como é que pode chamar uma hora tão funesta a sua hora? É porque foi a hora por ele almejada em toda a sua vida, visto que havia determinado que naquela noite havia de nos deixar a santa Comunhão, destinada a consumar a sua união com as almas diletas, pelas quais devia em breve dar o sangue e a vida. Eis aqui o que naquela noite Jesus disse a seus discípulos: Desiderio desideravi hoc pascha manducare vobiscum ― «Tenho desejado ansiosamente comer esta Páscoa convosco». Palavra pela qual o Redentor nos quis dar a entender o desejo ansioso que tinha de unir-se conosco neste santíssimo Sacramento de amor: desiderio desideravi ― «desejei ansiosamente»; estas palavras, diz São Lourenço Justiniani, saíram do Coração de Jesus abrasado em imenso amor.

Ora, a mesma chama que então ardia no Coração de Jesus, ainda está ardendo ali até ao presente; e a todos nós renova o convite feito então aos apóstolos de o receberem: Accipite et comedite, hoc est corpus meum (Mt 26, 26) ― «Tomai e comei: isto é o meu corpo». Além disso, para atrair-nos a recebê-lo com amor, promete o paraíso: Qui manducat meam carnem, habet vitam aeternam (Jo 6, 55) ― «Quem como a minha carne, tem a vida eterna». No caso contrário ameaça-nos com a morte eterna: Nisi manducaveritis carnem Filii hominis, non habebitis vitam in vobis (Jo 6, 54) ― «Se não comerdes a carne do Filho do homem, não tereis a vida em vós».

Estes convites, estas promessas, estas ameaças nasceram todas do desejo que tem Jesus Cristo de se unir conosco na santa comunhão, e este desejo nasce do amor que nos tem. «Não há abelha», disse um dia o Senhor a Santa Matilde, «que com tanta avidez esvoace sobre as flores para lhes sorver o mel, como eu anseio entrar nas almas que me desejam». Porque Jesus nos ama, quer ser amado de nós, e porque nos deseja seus, quer ser desejado, como diz São Gregório: Sitit sitiri Deus. Bem-aventurada a alma que se aproxima da mesa da comunhão com grande desejo de se unir a Jesus Cristo! Continuar lendo

CONTAS QUE TERÁ DE DAR A JESUS CRISTO QUEM NÃO SEGUE A VOCAÇÃO

joelhosAuferetur a vobis regnum Dei, et dabitur genti facienti fructus eius — “Ser-vos-á tirado o reino de Deus, e será dado a um povo que faça os frutos dele” (Matth. 21, 43).

Sumário. Avivemos a nossa fé. A graça que o Senhor nos concedeu chamando-nos a viver em sua casa é muito mais excelente do que se nos tivesse chamado a sermos rei do reino mais extenso da terra. Quanto maior, porém, a graça, tanto mais o Senhor se irritará contra nós, se não Lhe tivermos correspondido; tanto mais rigoroso será o vosso julgamento no dia das contas. Ai de nós, se não obedecermos à chamada divina, ou se por nossa culpa perdermos a vocação!

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A graça da vocação ao estado religioso não é uma graça ordinária; ela é muito rara e Deus a poucos a concede: Non fecit taliter omni nationi(1) — “Não fez assim a todas as nações”. Oh! Esta graça de ser chamado à vida perfeita e a ser doméstico de Deus em sua casa, quanto é superior à de ser chamado a ser rei do reino mais extenso do mundo! Pois, que comparação pode haver entre um reino temporal na terra e o reino eterno do céu?

Quanto maior, porém a graça, tanto mais o Senhor se irritará contra quem não lhe tiver correspondido, e tanto mais rigoroso será o seu julgamento no dia das contas. Se um rei chamasse um pastorzinho para seu palácio, a fim de o servir entre os nobres de sua corte, quão grande não seria a indignação daquele príncipe, se o súdito recusasse o seu favor, para não deixar o seu pobre redil e o seu pequeno rebanho?

Deus bem conhece o preço das suas graças; por isso castiga rigorosamente àquele que as despreza. Ele é o Senhor: quando chama, quer ser obedecido, e obedecido prontamente; pelo que, quando com a sua luz chama uma alma à vida perfeita, e esta não corresponde, priva-a de sua luz e abandona-a no meio das trevas. Oh! Quantas almas desgraçadas veremos reprovadas no dia do juízo, porque não quiseram obedecer à voz de Deus!

Agradece portanto ao Senhor, ter-te convidado a segui-Lo; mas treme, se não correspondes à graça. Chamando-te Deus a servi-Lo mais de perto, é sinal que Deus te quer salvo; mas só te quer salvo pelo caminho que te indica e escolhe. Se queres salvar-te seguindo o caminho que tu mesmo te escolhes, corres grande perigo de o não obteres. Pois, ficando no século ou a ele voltando, quando Deus te quer religioso, não receberás de Deus aqueles auxílios eficazes que te havia preparado em sua casa, e sem os quais não te salvarás. Oves meae vocem meam audiunt(2) — “As minhas ovelhas ouvem a minha voz”. Quem não quer obedecer à voz de Deus, dá sinal de que não é ovelha de Jesus, mas será condenado com os bodes no vale de Josafá.

Senhor, Vós tivestes para comigo este excesso de bondade, de escolher-me de entre tantos outros, para me colocar entre os vossos servos prediletos e fazer-me morar na vossa casa. Conheço quanto esta graça é grande, e quanto eu dela era indigno. Eis-me aqui: quero corresponder a tamanho amor, quero obedecer-Vos. Já que Vós fostes tão generoso para comigo, chamando-me, quando eu não Vos procurava, e além disso Vos era tão ingrato, não permitais que eu venha a cair nesta outra ingratidão suprema, de deixar-Vos, a Vós que por meu amor derramastes o vosso sangue e destes a vida, para novamente me entregar ao mundo, meu inimigo, que no passado tantas vezes me tem feito perder a vossa graça e a minha eterna salvação. Pois que me chamastes, dai-me a força para obedecer.

Já prometi obedecer-Vos, e de novo vo-Lo prometo; mas se Vós não me concedeis a graça da perseverança, não Vos posso ser fiel. A Vós peço esta perseverança, quero-a e espero-a pelos vossos merecimentos. — Dai-me a coragem de vencer as paixões da carne, com que o demônio quer que eu Vos atraiçoe. Amo-Vos, meu Jesus, e me consagro todo a Vós. Já sou vosso e vosso quero ser para sempre. — Maria, Mãe e esperança minha, Vós sois a Mãe da perseverança, que só com a vossa intercessão é concedida; vós ma haveis de alcançar; em vós confio. (IV 416.)

  1. Ps. 147, 20.
    2. Io. 10, 27.

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I – Santo Afonso

QUANTO É DOCE A MORTE DO JUSTO

morte_del_giusto_gIustorum animae in manu Dei sunt, et non tanget illos tormentum mortis ― “As almas dos justos estão na mão de Deus, e não os tocará o tormento da morte” (Sap. 3, 1)

Sumário. É assim: os tormentos, que na morte afligem os pecadores, não afligem os santos, porque já antes desse tempo deixaram pelo afeto os bens terrestres, consideraram as honras como fumo e vaidade e viveram desapegados dos parentes, amando-os só em Deus. D’outra parte, que felicidade morrer entregando-se nos braços de Jesus Cristo, que quis sofrer uma morte tão amarga, a fim de nos obter uma morte doce e cheia de consolação! Irmão meu, se na primeira noite a morte te colhesse, qual seria a tua morte, a do justo ou a do pecador?

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É assim: os tormentos que na morte afligem os pecadores, não afligem os santos: Non tanget illos tormentum mortis― “Não os tocará o tormento da morte”. Os santos não se abalam com esse Proficiscere, anima― “Parte, ó alma”, que tanto assusta os mundanos. Os santos não se afligem com o terem de deixar os bens da terra, porque nunca lhes tiveram o coração ligado. Deus é o Senhor do meu coração, diziam eles sempre, a minha porção é Deus para sempre ― Deus cordis mei et pars mea Deus in aeternum (1). Sois felizes, escrevia o Apóstolo a seus discípulos que pela causa de Jesus Cristo tinham sido despojados de seus bens, sois felizes, porque suportastes com alegria a rapina dos vossos bens, sabendo que tender um cabedal melhor e permanente: Cognoscentes vos habere meliorem et manentem substantiam (2).

Os santos não se afligem por deixarem as honras, porque desde muito as desprezaram e tiveram na conta do que efetivamente são, fumo e vaidade. Só estimaram a honra de amarem a Deus e de serem por Ele amados. Nem se afligem por deixarem os parentes, porque só os amaram em Deus; morrendo, recomendam-nos ao Pai celeste que os ama mais do que eles o podiam, e como esperam salvar-se, pensam que o melhor lhes poderão valer na pátria celestial do que ficando na terra. Em suma, o que disseram durante toda a vida: Deus meus et omnia ― “Meu Deus e meu tudo”, repetem-no com mais consolação e ternura no momento da morte.

Quem morre no amor de Deus não se inquieta com as dores que acompanham a morte; antes, nelas se compraz pensando que a vida vai acabar e que depois não lhe resta mais tempo para sofrer por Deus e testemunhar-Lhe outras provas do seu amor. Por isso, oferece-Lhe com afeto e paz estes últimos restos da sua vida e consola-se unindo o sacrifício da sua morte ao sacrifício que Jesus Cristo ofereceu um dia por ele na cruz ao seu eterno Pai. E assim morre feliz, dizendo: In pace in idipsum dormiam et requiescam (3) ― “Em paz dormirei nele e repousarei”. Oh! que felicidade morrer entregando-se e repousando nos braços de Jesus Cristo, que nos amou até à morte e quis sofrer uma morte tão dolorosa, a fim de nos obter uma morte doce e cheia de consolação! ― Meu irmão, quais seriam os teus sentimentos se tivesses de morrer neste instante? Continuar lendo

BEM-AVENTURADO O QUE NÃO QUER OUTRA COISA SENÃO A DEUS

woman-veil-churchBeati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum coelorum ― “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Matth. 5, 3).

Sumário. Persuadamo-nos bem de que só Deus pode contentar-nos; mas não contenta senão àqueles que são pobres de espírito, isso é, de desejos terrestres, e nada querem fora dele. Se, portanto, nós também queremos achar a verdadeira felicidade, desfaçamo-nos de todo o afeto à terra, entreguemo-nos a Deus sem reserva e digamos freqüentes vezes: Senhor, disponde de mim, e de tudo que é meu, segundo o vosso agrado; eu não quero senão o que Vós quereis.

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Pelos pobres de espírito entendem-se aqueles que são pobres de desejos terrestres e nada querem fora de Deus. Estes são pobres nos desejos, mas não na realidade, porque desde a presente vida vivem contentes. Por isso o Senhor não diz:Deles será, mas:deles é o reino dos céus: Ipsorum est regnum coelorum; porquanto já nesta terra são ricos em bens espirituais que de Deus recebem. Apesar de pobres em bens temporais, vivem contentes em seu estado, em contraste com os ricos em desejos terrestres, que na vida presente sempre são pobres e vivem descontentes, por grandes que sejam as suas riquezas. ― Jesus Cristo, como diz o Apóstolo (1), quis ser pobre, para com o seu exemplo nos ensinar o desprezo dos bens terrestres e desta forma nos tornar ricos em bens celestes, que são imensamente mais preciosos e de duração eterna. Eis porque declara que, quem não renuncia a tudo quanto possui na terra com certo apego, não pode ser seu verdadeiro discípulo (2).

Persuadamo-nos de que só Deus faz contentes, mas não faz plenamente contentes senão aquelas almas que o amam de todo o coração. Que lugar pode o amor de Deus achar num coração cheio de coisas terrestres? Muitas almas se queixam de que na meditação, na comunhão, nos outros exercícios de devoção não acham a Deus. Santa Teresa lhes diz: Desprende o teu coração das criaturas e acharás Deus. Continuar lendo

PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA: JESUS NO DESERTO E AS TENTAÇÕES DAS ALMAS ESCOLHIDAS

deserIesus ductus est in desertum a spiritu, ut tentaretur a diabolo — “Jesus foi levado pelo espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Matth. 4, 1).

Sumário. Meu irmão, se o Senhor permite que sejas tentado, não desanimes, porquanto vê nisso um sinal de que Ele te ama e te quer fazer mais semelhante a Jesus Cristo, que, como refere o Evangelho de hoje, foi também tentado. Esforça-te, porém, a exemplo do próprio Redentor, por empregar todos os meios para seres vencedor. Especialmente refreia as tuas pequenas paixões desordenadas, mortificando-as pela penitência e recorre sempre a Deus pela oração contínua.

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I. Os trabalhos que mais afligem nesta vida às almas amantes de Deus, não são tanto a pobreza, a enfermidade e as perseguições, como as tentações e as securas espirituais. Quando a alma goza da amorosa presença de Deus, todas as tribulações, em vez de a afligirem, mais a consolam, fornecendo-lhe a ocasião para oferecer a Deus algum penhor de seu amor. Mas ver-se pela tentação em perigo de perder a graça divina e temer na secura que já a perdeu, é isso uma pena demasiado amarga para quem ama deveras a Deus. — Observemos, porém que é esta a sorte comum das almas santas: Quia acceptus eras Deo, necesse fuit, ut tentatio probaret te (1) — “Porque eras aceito de Deus, por isso foi necessário que a tentação te provasse”.

Quem foi mais santo do que Jesus Cristo? Todavia ele foi levado pelo espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo. Em primeiro lugar, foi tentado de gula, porque “tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, teve fome. E chegando-se a Ele o tentador, disse: Se és Filho de Deus, dize que estas pedras se convertam em pães.”

Depois foi tentado de presunção, porque “o diabo o transportou à cidade santa e O pôs sobre o pináculo do templo e Lhe disse: Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, porque está escrito: Recomendou-te aos seus anjos, e eles te levarão nas palmas das mãos, a fim de que nem sequer tropeces numa pedra.” Finalmente foi tentado de idolatria; porque o diabo, vendo-se vencido uma outra vez, “o transportou ainda a um monte muito alto, e mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e Lhe disse: Todas estas coisas te darei, se prostrado me adorares.” Continuar lendo

DA MALÍCIA DO PECADO MORTAL – PONTO III

Resultado de imagem para pecadorO pecador injuria, desonra a Deus, e, no que toca sua parte, o cobre de amargura, pois não há amargura mais sensível do que ver-se pago com ingratidão pela pessoa amada em extremo favorecida. E a que se atreve o pecador?… Ofende ao Deus que o criou e tanto o amou, que deu por seu amor o sangue e a vida. E o homem o expulsa de seu coração ao cometer um pecado mortal. Deus habita na alma que o ama.

“Se alguém me ama… meu Pai o amará, e viremos a ele e faremos nele nossa morada” (Jo 14,23).

Notai a expressão faremos morada; Deus vem a essa alma e nela fixa sua mansão; de sorte que não a deixa, a não ser que a alma o expulse. “Não abandona se não é abandonado”, como diz o Concílio de Trento. E já que sabeis, Senhor, que aquele ingrato há de expulsar-vos, por que não o deixais desde já? Abandonai-o, parti antes que vos faça tão grande ofensa… Não, diz o Senhor; não quero deixá-lo, senão esperar que ele formalmente me despeça.

Assim, quando a alma consente no pecado, diz a seu Deus: Senhor, apartai-vos de mim (Jo 31,14). Não o diz por palavras, mas de fato, como adverte São Gregório. Bem sabe o pecador que Deus não pode harmonizar com o pecado. Bem vê que, pecando, obriga Deus a afastar-se dele. Rigorosamente, é como se lhe dissesse: Já que não, podeis ficar com meu pecado e tendes de afastar-vos de mim, — ide quando vos aprouver. E expulsando a Deus da alma, deixa entrar o inimigo que dela toma posse. Pela mesma porta por onde sai Deus, entra o demônio.

“Então vai, e leva consigo outros sete espíritos piores do que ele, entram e moram ali” (Mt 12,45).

Ao batizar-se um menino, o sacerdote exorciza o inimigo, dizendo-lhe: “Sai daqui, espírito imundo, e dá lugar ao Espírito Santo”; porque a alma do batizado, ao receber a graça, converte-se em templo de Deus (1Cor 3,16). Quando, porém, o homem consente no pecado, efetua precisamente o contrário, dizendo a Deus, que reside na sua alma: Continuar lendo

PRIMEIRA DOR DE MARIA SANTÍSSIMA – PROFECIA DE SIMEÃO

Resultado de imagem para nossa senhora das dores barrocoTuam ipsius animam pertransibit gladius ― “Uma espada transpassará a tua alma” (Luc. 2, 35).

Sumário. O Senhor usa esta compaixão conosco, de não nos deixar ver as cruzes que nos esperam, a fim de que as tenhamos de sofrer uma só vez. Maria Santíssima, ao contrário, depois da profecia de São Simeão, tinha sempre diante dos olhos e padecia continuamente todas as penas que a esperavam na Paixão do Filho. Mas se Jesus e Maria inocentes tanto padeceram por nosso amor, como ousaremos lamentar-nos, nós que somos pecadores, quando temos de padecer um pouco por amor deles?

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Neste vale de lágrimas, cada homem nasce para chorar e cada um deve padecer sofrendo aqueles males que diariamente lhe acontecem. Mas quanto mais triste seria a vida, se cada um soubesse também os males futuros que o têm de afligir! O Senhor usa esta compaixão conosco, de não nos deixar ver as cruzes que nos esperam, a fim de que, se as temos de padecer, ao menos as padeçamos uma só vez. ― Mas Deus não usou semelhante compaixão para com Maria, a qual, porque Deus quis que fosse Rainha das dores e toda semelhante ao Filho, teve sempre de ver diante dos olhos e de padecer continuamente todas as penas que a esperavam; e estas foram as penas da paixão e morte de seu amado Jesus.

Eis que no templo de Jerusalém, Simeão, depois de ter recebido o divino Infante em seus braços, lhe prediz que aquele seu Filho devia ser alvo de todas as contradições e perseguições dos homens e que por isso a espada de dor devia traspassar-lhe a alma: Et tuam ipsius animam pertransibit gladius. ― Davi, no meio de todas as suas delícias e grandezas reais, quando ouviu que o Profeta Natan lhe anunciava a morte do filho, não tinha mais paz: chorava, jejuava, dormia à terra nua. Não é assim que fez Maria. Com suma paz recebeu ela a nova da morte do Filho e com a mesma paz continuou a sofrê-la; mas ainda assim, que dor não devia sentir o seu Coração!

Nem serviu para lha mitigar o conhecimento que já de antemão tinha do sacrifício a fazer, pois que, como foi revelado a Santa Teresa, a bendita Mãe conheceu então em particular e mais distintamente todas as circunstâncias dos sofrimentos, tanto exteriores como interiores, que haviam de atormentar o seu Jesus na sua Paixão. Numa palavra, a mesma Bem-Aventurada Virgem disse a Santa Matilde, que a este aviso de São Simeão toda a sua alegria se converteu em tristeza. Continuar lendo

COMEMORAÇÃO DA COROA DE ESPINHOS DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

coroa-de-espinhosEt milites plectentes coronam de spinis, imposuerunt capiti eius ― “E os soldados tecendo de espinhos uma coroa, lha puseram sobre a cabeça” (Io. 19, 2).

Sumário. Os bárbaros algozes, não contentes com a horrível carnificina feita em Jesus com a flagelação, Lhe põem por escárnio uma coroa de espinhos na cabeça e apertam-na de modo que os espinhos penetraram até ao cérebro. Eis como o Senhor quis reparar a maldição fulminada contra a terra, isto é, contra Adão, em conseqüência da qual a natureza humana não pode produzir senão abrolhos e espinhos de culpas! Eis como Jesus quis expiar os nossos maus pensamentos!

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Os bárbaros algozes ainda não contentes com a horrenda carnificina feita no corpo sacrossanto de Jesus Cristo com a flagelação, instigados pelos demônios e pelos judeus, querendo tratá-Lo de rei de comédia, Lhe põem aos ombros um farrapo de um vestido vermelho, à guisa de manto real; uma cana verde na mão à guisa de cetro, e na cabeça um feixe de espinhos entrelaçados em forma de coroa. E para que esta coroa não só Lhe servisse de ludibrio, mas também Lhe causasse grande dor, foi feita, na opinião comum dos escritores, em forma de capacete ou chapéu, de sorte que cobria toda a cabeça do Senhor, descia até sobre a testa.

Além disso, colhe-se do Evangelho de São Mateus, que os algozes com a mesma cana batiam nos espinhos compridos, a fim de entrarem mais dentro na cabeça. Com efeito, no dizer de São Pedro Damião, chegaram a penetrar até ao cérebro: spinae cerebrum perforantes. Se um só espinho encravado no pé de um leão o faz ressoar toda a floresta com seus dolorosos gemidos, imagina quão acerba deve ter sido a dor de Jesus Cristo que teve toda a sagrada cabeça perfurada, a parte mais sensível do corpo humano, ao qual se reúnem todos os nervos e sensações.

Tão atroz tormento não foi para Jesus de curta duração; bem ao contrário, foi o mais longo da sua Paixão, porquanto durou até à sua morte. Visto que os espinhos ficavam encravados na cabeça, todas as vezes que lhe tocavam na coroa ou na cabeça, sempre se lhe renovavam as dores. E o Cordeiro manso deixou-se atormentar à vontade dos algozes, sem proferir uma só palavra. ― Era tão grande a abundância de sangue que corria das feridas, que Lhe cobria o rosto, ensopava os cabelos e a barba, e Lhe enchia os olhos. São Boaventura chega a dizer que não era já o belo rosto de Senhor que se via, mas o rosto de um homem esfolado. Eis aí, exclama o Bem-aventurado Dionísio Cartusiano, como quis ser tratado o Filho de Deus, para obter para nós a coroa de glória no céu. Continuar lendo

DA MALÍCIA DO PECADO MORTAL – PONTO II

Resultado de imagem para pecadorO pecador não só ofende a Deus, mas também o desonra (Rm 2,23). Com efeito, renunciando à graça divina por um miserável prazer, menospreza e rejeita a amizade de Deus. Se o homem perdesse esta soberana amizade para ganhar um reino ou ainda o mundo inteiro, não há dúvida que faria um mal imenso, pois a amizade de Deus vale mais que o mundo e que mil mundos. E por que será que se ofende a Deus? (Sl 10,13). Por um punhado de terra, por um ímpeto de ira, por um prazer brutal, por uma quimera, por um capricho (Ez 13,19). Quando o pecador começa a deliberar consigo mesmo se deve ou não dar consentimento ao pecado, toma, por assim dizer, em suas mãos, a balança e se põe a considerar o que pesa mais, se a graça de Deus ou a ira, a quimera, o prazer… E quando, por fim, dá o consentimento, declara que para ele vale mais aquela quimera ou aquele prazer que a amizade divina. Vede, pois, como Deus é menosprezado pelo pecador. Davi, ao considerar a grandeza e majestade de Deus, exclamava:

“Senhor, quem há que vos seja semelhante?” (Sl 34,10)

Mas Deus, ao contrário, vendo- se comparado pelos pecadores a uma satisfação vilíssima e posposto a ela, lhes diz:

“A quem me comparastes e igualastes”? (Is 40,25).

De modo que, exclama o Senhor: vale aquele prazer mais que minha graça? (Ecl 23,35). Não terias pecado, se soubesses que ao cometê-lo perderias uma das mãos, ou dez escudos, ou menos talvez. Assim, diz Salviano, só Deus parece tão vil a teus olhos que merece ser posposto a um ímpeto de cólera, a um gozo indigno.

Além disso, quando o pecador, para satisfazer qualquer paixão, ofende a Deus, converte em sua divindade essa paixão, porque nela põe o seu último fim. Assim diz São Jerônimo: Continuar lendo

AMOR DE JESUS CRISTO EM DAR-SE A NÓS COMO ALIMENTO

eucaristia_12In funiculis Adam traham eas, in vinculis caritatis… et declinavi ad eum ut vescerentur ― “Eu as atrairei com as cordas com que se atraem os homens, com as prisões da caridade… inclinei-me para ele, para que comesse” (Os 11, 4).

Sumário. Quanto se julgaria distinguido o súdito a quem o príncipe mandasse algumas iguarias da sua mesa? Jesus Cristo, porém, na santa comunhão, nos dá para sustento, não só uma parte da sua mesa, mas o seu próprio corpo, a sua alma e a sua divindade. Será porventura uma pretensão exagerada da parte do Senhor, se, em compensação de tão grande dom, nos pede o nosso pobre coração todo inteiro? Todavia quantos cristãos não há que Lho recusam completamente ou Lho querem dar, mas dividido entre Ele e as criaturas?

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Jesus Cristo não satisfez o seu amor, sacrificando a sua vida por nós num oceano de ignomínias e dores, a fim de patentear o amor que nos tinha. Além disso, e para nos obrigar mais fortemente a amá-Lo, quis, na véspera da sua morte, deixar-se todo a nós como nosso alimento na santíssima Eucaristia. ― Deus é todo-poderoso, mas depois de dar-se a uma alma neste Sacramento de amor, não lhe pode dar mais. Diz o Concílio de Trento que Jesus, dando-se aos homens na santa comunhão, derramou (por assim dizer) neste único dom todas as riquezas de seu amor infinito:Divitias sui erga homines amoris velut effudit.

Como não se julgaria honrado, escreve São Francisco de Sales, o vassalo a quem o príncipe enviasse algumas iguarias da sua mesa! E que seria se lhe desse para sustento alguma coisa da sua própria substância? Jesus Cristo, porém, na santa comunhão, nos dá para sustento, não só uma parte de sua mesa, não só uma parte da sua carne sacrossanta, mas o seu corpo inteiro: Accipite et comedite: hoc est corpus meum (1) ― “Tomai e comei, isto é o meu corpo”. E com o corpo nos dá também a alma e a divindade. Numa palavra, diz São João Crisóstomo, Jesus Cristo dando-se a si próprio no Santíssimo Sacramento, dá tudo o que tem e não Lhe resta mais nada para dar: Totum tibi dedit, nihil sibi reliquit.

É pois com razão que este dom é chamado por Santo Tomás: sacramento e penhor de amor, e por São Bernardo: amor dos amores: amor amorum, porque Jesus Cristo reúne e completa neste sacramento todas as outras finezas do seu amor para conosco. Pelo mesmo motivo Santa Maria Madalena de Pazzi chamava o dia em que Jesus instituiu este sacramento, o dia do amor. Ó maravilha e prodígio do amor divino! Deus, o Senhor de todas as coisas, se faz todo nosso! Continuar lendo

QUARTA FEIRA DE CINZAS: A LEMBRANÇA DA MORTE E O JEJUM QUARESMAL

Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar"Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris ― «Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar» (Gen 3, 19).

Sumário. Os insensatos que não crêem na vida futura, estimulam-se com o pensamento da morte a passarem bem a vida. De maneira bem diferente devemos nós proceder, os que sabemos pela fé que a alma sobrevive ao corpo. Nós, lembrando-nos de que em breve temos de morrer, devemos cuidar da nossa eternidade e por meio de oração e penitência aplacar a divina justiça. É com este intuito que a Igreja, depois de por as cinzas sobre a cabeça, nos ordena o jejum da Quaresma.

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Para compreendermos em toda a sua extensão o sentido destas palavras, imaginemos ver uma pessoa que acaba de exalar o último suspiro. Ó Deus, a cada um que vê esse corpo, inspira nojo e horror. Não passaram bem vinte e quatro horas depois que aquela pessoa morreu, e já o mau cheiro se faz sentir. É preciso abrir as janelas e queimar bastante incenso, afim de que o fedor não infeccione a casa toda. Os parentes com pressa mandam levar o defunto para fora da casa e entregar à terra.

Metido que foi o cadáver na sepultura, vai se tornando amarelo e depois preto. Em seguida, aparece em todos os membros uma lanugem branca e repelente, donde sai um pus infecto que corre pela terra e donde se gera uma multidão de vermes. Os ratos vêm também procurar o pasto nesse cadáver, roendo-o uns por fora, ao passo que outros entram na boca e nas entranhas. Despegam-se e caem as faces, os lábios, os cabelos; escarnam-se os braços e as pernas apodrecidas, e afinal os vermes, depois de consumidas todas as carnes, consomem-se a si próprios. E deste corpo só restará um esqueleto fétido, que com o tempo se divide, ficando reduzido a um punhado de pó.

Eis aí o que é o homem, considerado como criatura mortal. Eis aí o estado a que tu também, meu irmão, serás, talvez em breve, reduzido: um punhado de pó fedorento. Nada importa ser alguém moço o velho, são ou enfermo: a todos caberá a mesma sorte, o que a Igreja recorda pondo as cinzas bentas indistintamente sobre a cabeça de todos: Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris ― «Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar». Continuar lendo

DA MALÍCIA DO PECADO MORTAL – PONTO I

Resultado de imagem para pecado mortal igrejaFilios enutrivi et exaltavi; ipsi autem spreverunt me. – “Filhos criei e engrandeci-os; mas eles me desprezavam” (Is 1,2)

Que faz aquele que comete pecado mortal?… Injuria a Deus, desonra-O e, no que depende dele, cobre-o de amargura.

Primeiramente, o pecado mortal é uma ofensa grave que se faz a Deus. A malícia de uma ofensa, diz São Tomás, se mede pela pessoa que a recebe e pela pessoa que a comete. A ofensa feita a um simples particular é sem dúvida um mal; mas constitui delito maior se é feita a uma pessoa de alta dignidade, e muito mais grave quando visa o rei… E Quem é Deus? É o Rei dos reis (Ap 17,14). Deus é a Majestade infinita, perante quem todos os príncipes da terra e todos os santos e anjos do céu são menos que um grão de areia (Is 40,15). Diante da grandeza de Deus, todas as criaturas são como se não existissem (Is 40,17). Eis o que é Deus… E o homem, o que é?… Responde São Bernardo: saco de vermes, pasto de vermes, que cedo o hão de devorar. O homem é um miserável que nada pode, um cego que nada vê; pobre e nu, que nada possui (Ap 3,17). E este verme miserável se atreve a injuriar a Deus? exclama o mesmo São Bernardo. Com razão, pois, afirma o Doutor Angélico, que o pecado do homem contém uma malícia quase infinita.

Por isso, Santo Agostinho chama, absolutamente, o pecado mal infinito.

Daí se segue que todos os homens e todos os anjos não poderiam satisfazer por um só pecado, mesmo que se oferecessem à morte e ao aniquilamento. Deus castiga o pecado mortal com as penas terríveis do inferno; contudo, esse castigo é, segundo dizem todos os teólogos, citra condignum, isto é, menor que a pena com que tal pecado deveria ser castigado.

E, na verdade, que pena bastará para castigar como merece um verme que se rebela contra seu Senhor? Somente Deus é Senhor de tudo, porque é o Criador de todas as coisas (Et 13,9). Por isso, todas as criaturas lhe devem obediência. Continuar lendo

O PECADOR EXPULSA DEUS DO SEU CORAÇÃO

Resultado de imagem para pecado mortal venialQui dixerunt Deo: Recede a nobis, et scientiam viarum tuarum nolumus — “Disseram a Deus: Retira-te de nós, pois não queremos conhecer os teus caminhos” (Iob 21, 14).

Sumário. O pecador sabe que Deus não pode ficar com o pecado; vê que pecando obriga a Deus a afastar-se. Diz-Lhe portanto, não com palavras, mas de fato: Senhor, já não podeis ficar junto com o meu pecado e quereis partir, podeis ir-Vos embora. Expulsando assim Deus de sua alma, deixa entrar imediatamente o demônio, que dela toma posse. Que baixeza! Irmão meu, dize-me: praticaste tu também tão grande vilania para com Jesus Cristo?… Terás a triste coragem de a tornares a praticar no futuro?

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Deus vem a morar numa alma que o ama; é o que Jesus Cristo mesmo nos assegura dizendo: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará e viremos a ele e faremos nele morada:Ad eum veniemus, et mansionem apud eum faciemus” (1). Notemos as palavras:mansionem faciemus — “faremos morada“. Deus vem à alma a fim de nela permanecer sempre, de sorte que nunca a deixa, a não ser que a alma o faça sair, como diz o Concílio de Trento. — Mas, Senhor, Vós sabeis desde já que aquele ingrato Vos expulsará em qualquer momento: porque não partis agora? Quereis esperar que ele mesmo Vos expulse? Deixai-o e parti antes que ele Vos faça sofrer essa grande injúria. — Não, responde Deus, não quero retirar-me, enquanto ele mesmo não me repelir.

Assim, quando a alma consente no pecado, diz a Deus: Senhor, apartai-Vos de mim. Dixerunt Deo: recede a nobis (2). Não o diz vocalmente, mas de fato, como afirma São Gregório: Dicit: Recede, non verbis, sed moribus. — O pecador sabe antecipadamente que Deus não pode ficar com o pecado; vê que pecando obriga a Deus a afastar-se. É como se Lhe dissesse: Já que não podeis ficar junto com o meu pecado, já que quereis partir, podeis retirar-Vos. E expulsando Deus de sua alma, deixa entrar imediatamente o demônio, que dela toma posse. Pela mesma porta por onde sai Deus entra e vem estabelecer-se o seu inimigo: Et intrantes habitant ibi (3) — “Entrando habitam ali“.

Ao batizar-se uma criança, o padre ordena ao demônio: Sai desta alma, espírito imundo e sede o lugar ao Espírito Santo. Com efeito, aquela alma recebendo a graça converte-se em templo de Deus, como diz São Paulo (4). O contrário sucede inteiramente, quando o homem consente no pecado; então diz a Deus que reside em sua alma: Sai de mim, ó Senhor, e cede o lugar ao demônio. É disto exatamente que o Senhor se queixou a Santa Brígida, dizendo que é tratado pelos pecadores como um rei expulso de seu trono, no qual vai ser substituído por um salteador. Continuar lendo

DA CONFIANÇA EM JESUS CRISTO

CONFNolite itaque amittere confidentiam vestram, quae magnam habet remunerationem ― “Não queirais perder a vossa confiança, que tem grande remuneração” (Hebr. 10, 35)

Sumário. A misericórdia de Deus é como que uma fonte inexaurível, donde tirará mais graças quem trouxer um vaso mais amplo de confiança. Se, pois, quisermos enriquecer espiritualmente, confiemos muito nos méritos de Jesus Cristo e na intercessão de Maria. Avivemos freqüentemente esta nossa confiança, lembrando-nos de que Deus é bom e nos quer ajudar; que é poderoso e nos pode ajudar; que é fiel e prometeu ajudar-nos. Não busquemos, porém, uma confiança sensível, que redunda nos sentidos; basta que tenhamos a vontade de confiar.

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É nimiamente grande a misericórdia de Jesus Cristo para conosco; mas para nosso maior bem, Ele quer que obtenhamos a misericórdia por uma viva confiança baseada em seus merecimentos e em suas promessas. Por isso São Paulo nos exorta a que guardemos a confiança, dizendo que ela nos alcança de Deus uma grande recompensa:magnam habet remunerationem.― Revelou o Senhor a Santa Gertrudes que a nossa confiança Lhe faz uma violência tão grande, que não pode deixar de atender-nos em tudo  que Lhe pedirmos. No mesmo sentido escreve São Bernardo, que a divina misericórdia é como que uma fonte inexaurível, da qual tirará maior abundância de graças quem trouxer um vaso mais amplo de confiança, segundo o que disse o Salmista:Fiat misericordia tua, Domine, super nos, quemadmodum speravimos in te (1) ― “Venha, Senhor, sobre nós a vossa misericórdia, à proporção que em Vós temos esperado“.

Deus mesmo declarou que protege e salva todos os que nele confiam (2). Alegremo-nos, pois, dizia Davi, todos aqueles que esperam em Vós, meu Deus, porque serão eternamente bem-aventurados e Vós habitareis neles (3). E em outro lugar acrescenta que a misericórdia cerca e guarda àquele que confia no Senhor, e que estará ao abrigo dos perigos de perder-se (4).

Oh! quão grandes são as promessas que nas Sagradas Escrituras são feitas aos que esperam em Deus! Vemo-nos porventura perdidos por causa dos pecados cometidos? Eis que temos o remédio à mão: Vamos com confiança aos pés de Jesus, diz o Apóstolo, e ali acharemos o perdão: Adeamus cum fiducia ad thronum gratiae ― “Vamos com confiança ao trono da graça” (5). Não demoremos em nos aproximarmos de Jesus Cristo, até que esteja assentado como Juiz num trono de justiça; vamos agora, visto estar ainda num trono de graça e lembremo-nos sempre do que diz São João Crisóstomo: “O nosso Salvador tem mais desejo de nos perdoar do que nós desejamos ser perdoados”. Continuar lendo

DOMINGO DA QUINQUAGÉSIMA: A PAIXÃO DE JESUS CRISTO E OS DIVERTIMENTOS DO CARNAVAL

paixaoConsummabuntur omnia, quae scripta sunt per prophetas de filio hominis — “Será cumprido tudo o que está escrito pelos profetas, tocante ao Filho do homem” (Luc. 18, 31).

Sumário. Não é sem uma razão mística que a Igreja propõe hoje à nossa meditação Jesus Cristo predizendo a sua dolorosa Paixão. A nossa boa Mãe deseja que nós, seus filhos, nos unamos a ela, para compadecermos do seu divino Esposo, e o consolarmos com os nossos obséquios, ao passo que os pecadores, nestes dias mais do que em outros tempos, lhe renovam todos os ultrajes descritos no Evangelho. Quer ela também que roguemos pela conversão de tantos infelizes, nossos irmãos. Não temos por ventura bastantes motivos para isso?

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I. Não é sem razão mística que a Igreja propõe hoje à nossa meditação Jesus Cristo predizendo a sua dolorosa Paixão. Deseja a nossa boa Mãe que nós, seus filhos, nos unamos a ela na compaixão de seu divino Esposo, e o consolemos com os nossos obséquios; porquanto os pecadores, nestes dias mais do que em outros tempos, lhe renovam os ultrajes descritos no Evangelho.

Tradetur gentibus — “Ele vai ser entregue aos gentios”. Nestes tristes dias os cristãos, e quiçá entre eles alguns dos mais favorecidos, trairão, como Judas, o seu divino Mestre e o entregarão nas mãos do demônio. Eles o trairão, já não às ocultas, senão nas praças e vias públicas, fazendo ostentação de sua traição! Eles o trairão, não por trinta dinheiros, mas por coisas mais vis ainda: pela satisfação de uma paixão, por um torpe prazer, por um divertimento momentâneo!

Illudetur, flagellabitur et conspuetur — “Ele será mortejado, flagelado e coberto de escarros”. Uma das baixezas mais infames que Jesus Cristo sofreu em sua Paixão, foi que os soldados lhe vendaram os olhos e, como se ele nada visse, o cobriram de escarros, e lhe deram bofetadas, dizendo: Profetiza agora, Cristo, quem te bateu? Ah, meu Senhor! Quantas vezes esses mesmos ignominiosos tormentos não Vos são de novo infligidos nestes dias de extravagância diabólica? Pessoas que se cobrem o rosto com uma máscara, como se Deus assim não pudesse reconhecê-las, não têm pejo de vomitar em qualquer parte palavras obscenas, cantigas licenciosas, até blasfêmias execráveis contra Santo Nome de Deus! — Et postquam flagellaverint, occident eum — “Depois de o terem açoitado, o farão morrer”. Sim, pois se, segundo a palavra do Apóstolo, cada pecado é uma renovação da crucifixão do Filho de Deus, ah! Nestes dias Jesus será crucificado centenas e milhares de vezes. Continuar lendo

FRUTOS DA MEDITAÇÃO DAS DORES DE MARIA SANTÍSSIMA

doresSicut qui thesaurizat, ita et qui honorat matrem suam ― “Como quem ajunta um tesouro, assim se porta o que honra sua mãe” (Eclo 3, 5).

Sumário. Por causa do imenso amor com que Jesus Cristo ama sua querida Mãe, são-Lhe muito agradáveis os que com devoção meditam nas dores de Maria Santíssima e inúmeras são as graças que lhes comunica. Mas infelizmente, quão poucos são os que praticam tão bela devoção! Muitos cristãos, em vez de se compadecerem das dores de Maria, lh’as renovam com seus pecados ou sua tibieza. Irmão meu, serás tu também um destes ingratos?

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Para compreender quanto agrada à Bem-Aventurada Virgem que nos lembremos de suas dores, bastaria somente saber que ela, no ano de 1239, apareceu a sete devotos seus (que depois foram os fundadores da Ordem dos Servos de Maria), com um hábito negro na mão e ordenou-lhes que, desejando fazer-lhe causa agradável, meditassem com freqüência em suas dores. Por isso queria que em memória delas trouxessem daí em diante aquele hábito lúgubre. Jesus Cristo mesmo revelou à Bem-aventurada Verônica de Binasco, que quase Lhe agrada mais ver compadecida sua Mãe que Ele mesmo, pois que lhe disse assim: Filha, são-me caras as lágrimas derramadas pela minha Paixão; mas como eu amo com amor imenso a minha Mãe, me é mais cara a meditação das dores que ela padeceu na minha morte.

Por isso são muito grandes as graças que Jesus prometeu aos devotos das dores de Maria. Refere o Padre Pelbarto ter sido revelado a Santa Isabel, que São João Evangelista, depois que a Santíssima Virgem foi assunta ao céu, desejava vê-la mais uma vez. Foi-lhe concedida a graça e apareceu-lhe sua cara Mãe e juntamente com ela também Jesus Cristo. Ouviu depois, que Maria pediu ao Filho alguma graça especial para os devotos das suas dores e que Jesus lhe prometeu para eles quatro graças especiais: 1º. Que o que invocar a divina Mãe pelos merecimentos de suas dores merecerá fazer, antes da morte, verdadeira penitência de todos os seus pecados. 2º. Que ele defenderá aqueles devotos nas tribulações em que se acharem, especialmente na hora da morte, 3º. Que imprimirá neles a memória de sua Paixão e que no céu lhes dará depois o competente prêmio. 4º. Que entregará os tais devotos nas mãos de Maria, afim de que deles disponha à sua vontade e lhes obtenha todas as graças que quiser. Em comprovação de tudo isto encontram-se nos livros inúmeros exemplos. Continuar lendo

AMOR DE JESUS EM QUERER SATISFAZER POR NÓS

satisfDilexit nos, et tradidit semet ipsum pro nobis oblationem et hostiam Deo ― “(Jesus) amou-nos e se entregou a si mesmo por nós em oblação e como hóstia para Deus” (Eph. 5, 2).

Sumário. Nunca se deu, nem se dará jamais, no mundo outro fato semelhante ao que está consignado nos Evangelhos. Estando o homem por sua própria culpa condenado à morte eterna, o Filho de Deus pediu e obteve de seu divino Pai, que o deixasse tomar a natureza humana e pagar com a própria morte as penas devidas ao homem. Que te parece, irmão meu, este amor do Filho e do Pai? Todavia, a maior parte dos homens, talvez tu também, não responderam a tamanho amor senão com ingratidão.

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A história refere um fato de um amor tão prodigioso que será a admiração de todos os séculos. Um rei, senhor de muitos reinos, tinha um filho único, tão belo, tão santo, tão amável que era as delícias do pai, que o amava tanto como a si mesmo. Ora, este jovem príncipe tinha tão grande afeição a um de seus escravos, que tendo aquele escravo cometido um crime, pelo qual foi condenado à morte, o príncipe se ofereceu a morrer em seu lugar. E o pai, zeloso dos direitos da justiça, consentiu em condenar à morte seu filho bem-amado, afim de que o escravo escapasse do suplício que havia merecido. A sentença foi executada: o filho morreu no patíbulo, e o escravo ficou salvo.

Este fato, que não teve e nunca terá outro semelhante no mundo, está consignado nos Evangelhos. Ali se lê que o Filho de Deus, o Senhor do universo, vendo o homem condenado, pelo seu pecado, à morte eterna, quis tomar a natureza humana, e pagar com a sua morte os castigos devidos ao homem: Oblatus est, quia ipse voluit (1) ― “Ele foi oferecido, porque o quis“. E o Pai Eterno deixou-o morrer sobre a cruz para nos salvar a nós, miseráveis pecadores: Proprio Filio non pepercit, sed pro nobis omnibus tradidit illum (2) ― “Não perdoou a seu próprio Filho, mas entregou-o por nós todos“. Que te parece, alma devota, este amor do Filho e do Pai?

Desta sorte, meu amável Redentor, morrendo quisestes sacrificar-Vos para me alcançar o perdão! E que Vos darei eu em reconhecimento? Vós me haveis obrigado demais a amar-Vos, e eu seria demais ingrato, se Vos não amasse de todo o meu coração. Vós me haveis dado a vossa vida divina, e eu, miserável pecador como sou, Vos dou a minha. Sim, ao menos tudo o que me resta de vida, quero empregá-lo unicamente em amar-Vos, obedecer-Vos e agradar-Vos. Continuar lendo

O CARNAVAL SANTIFICADO E AS DIVINAS BENEFICÊNCIAS

rezando-iiFidem posside cum amico in paupertate illius, ut et in bonis illius laeteris ― “Guarda fé ao teu amigo na sua pobreza, para que também te alegres com ele nas suas riquezas” (Ecclus. 22, 28).

Sumário. Para desagravar o Senhor ao menos um pouco dos ultrajes que lhe são feitos, os Santos aplicavam-se nestes dias do carnaval, de modo especial, ao recolhimento, à oração, à penitência, e multiplicavam os atos de amor, de adoração e de louvor para com seu Bem-Amado. Procuremos imitar estes exemplos, e se mais não pudermos fazer, visitemos muitas vezes o Santíssimo Sacramento e fiquemos certos de que Jesus Cristo no-lo remunerará com as graças mais assinaladas.

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Por este amigo, a quem o Espírito Santo nos exorta a sermos fiéis no tempo da sua pobreza, podemos entender Jesus Cristo, que especialmente nestes dias de carnaval é deixado sozinho pelos homens ingratos e como que reduzido à extrema penúria. Se um só pecado, como dizem as Escrituras, já desonra a Deus, o injuria e o despreza, imagina quanto o divino Redentor deve ficar aflito neste tempo em que são cometidos milhares de pecados de toda a espécie, por toda a condição de pessoas, e quiçá por pessoas que Lhe estão consagradas. Jesus Cristo não é mais suscetível de dor; mas, se ainda pudesse sofrer, havia de morrer nestes dias desgraçados e havia de morrer tantas vezes quantas são as ofensas que lhe são feitas.

É por isso que os santos, afim de desagravarem o Senhor um pouco de tantos ultrajes, aplicavam-se no tempo de carnaval, de modo especial, ao recolhimento, à penitência, à oração, e multiplicavam os atos de amor, de adoração e de louvor para com o seu Bem-Amado. No tempo de carnaval Santa Maria Madalena de Pazzi passava as noites inteiras diante do Santíssimo Sacramento, oferecendo a Deus o sangue de Jesus Cristo pelos pobres pecadores. O Bem-aventurado Henrique Suso guardava um jejum rigoroso afim de expiar as intemperanças cometidas. São Carlos Borromeu castigava o seu corpo com disciplinas e penitências extraordinárias. São Filipe Néri convocava o povo para visitar com ele os santuários e exercícios de devoção. O mesmo praticava São Francisco de Sales, que, não contente com a vida mais recolhida que então levava, pregava ainda na igreja diante de um auditório numerosíssimo. Tendo conhecimento que algumas pessoas por ele dirigidas se relaxavam um pouco nos dias de carnaval, repreendia-as com brandura e exortava-as à comunhão freqüente. Continuar lendo

DO NÚMERO DOS PECADOS

Não se perdoa a todos igual número de pecados - Rumo à SantidadeOmnia in mensura et numero et pondere disposuisti― “Dispuseste tudo com medida e conta e peso” (Sap 11, 21).

Sumário. É sentimento de muitos Santos Padres, que Deus, assim como determinou para cada homem o número dos dias de vida que lhe quer dar, do mesmo modo fixou para cada um deles o número dos pecados que lhe quer perdoar e completado esse número não perdoa mais. Quem sabe, meu irmão, se depois dessa primeira satisfação indigna, depois do primeiro pensamento consentido, depois do primeiro pecado cometido, não quererá o Senhor castigar-te com uma morte repentina? O que então seria de ti por toda a eternidade?

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Se Deus castigasse desde logo a quem O ofende, de certo não se veria injuriado como o é atualmente; mas por isso mesmo que o Senhor não castiga logo e espera, os pecadores animam-se a ofenderem-No mais. É porém preciso atender bem, que se Deus espera e suporta, todavia não espera e suporta sempre.

É sentimento de muitos Santos Padres, de São Basílio, São Jerônimo, Santo Ambrósio, São Cirilo de Alexandria, São João Crisóstomo, Santo Agostinho e outros, que Deus, assim como determinou o número dos dias de vida, os grãos de saúde e de talento que quer dar a cada homem, assim fixou para cada qual o número dos pecados que lhe quer perdoar; cheio o qual, não perdoa mais: “Devemos ter por certo”, diz Santo Agostinho, “que Deus suporta o homem até certo ponto, depois do qual não há mais perdão para ele: Nullam illi veniam reservavi“.

E não foi ao acaso que estes Santos Padres assim falaram, senão baseados nas divinas Escrituras, que em vários lugares dizem claramente que, embora os pecadores não contem os pecados, Deus os enumera, para castigá-los, quando o número estiver completo: ut in plenitudine peccatorum puniat (1). De sorte que Deus espera até ao dia em que se complete a conta dos pecados, e então é que pune. Continuar lendo

O PECADO RENOVA A PAIXÃO DE JESUS CRISTO

renovaRursum crucifigentes sibimet ipsis Filium Dei, et ostentui habentes ― “Eles outra vez crucificam o Filho de Deus para si próprios e o expõem à ignomínia” (Heb 6, 6)

Sumário. Quem comete o pecado, contraria todos os desígnios amorosos de Jesus Cristo, inutiliza para si os frutos da Redenção, e, como diz São Paulo, pisa o Filho de Deus aos pés, despreza e profana seu sangue e renova a sua paixão e morte. Portanto, especialmente neste tempo de carnaval o Senhor é cada dia crucificado milhares de vezes. Imagina que são tantos os Calvários quantos são os antros do pecado. Ai, meu pobre Senhor!

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Considera a grandíssima injúria que o pecado mortal faz à Paixão de Jesus Cristo. O intuito do Filho de Deus, em fazer-se homem, foi tirar o pecado do mundo; a este fim, como diz Isaías, colimavam todos os seus pensamentos, palavras, obras e sofrimentos:Et iste omnis fructus, ut auferatur peccatum(1) ― “Este é todo o seu fructo, que seja tirado o pecado“. Pois bem, quem peca, inutiliza para si este grande fruto da Redenção e contraria assim todos os desígnios e intentos amorosos do Redentor. ― Se o pecado é acompanhado de escândalo, contraria-os também para os outros, fechando, por assim dizer, em despeito de Cristo, para si e para o próximo, as portas do céu e abrindo as do inferno.

Mais, o pecador, como diz São Paulo, pisa aos pés o Filho de Deus, despreza e profana o seu preciosíssimo Sangue, chega até ao excesso de renovar a sua crucifixão e morte: Rursum crucifigentes sibimet ipsis Filium Dei ― “Crucificando outra vez o Filho de Deus para si próprios“. Isto, na interpretação de Santo Tomás, se verifica de duas maneiras. Primeiro, pecando se faz aquilo pelo que Jesus Cristo foi crucificado, a saber, o pecado. Portanto, se a morte do senhor não houvera sido suficiente para expiar os pecados todos, fora conveniente, pelo encargo de Redentor, que tomou sobre si, que se deixasse crucificar tantas vezes quantos são os pecados cometidos. Em segundo lugar, pelo pecado comete-se uma ação mais abominável aos olhos de Jesus e mais dolorosa para seu Coração do que todos os opróbrios e penas padecidas na sua Paixão e por isso de boa vontade quisera tornar a sofrê-las afim de impedir um só pecado mortal.

É assim que, especialmente neste tempo de carnaval, o Senhor é crucificado pelos pecadores milhares de vezes cada dia. Imagina, pois, que são tantos os Calvários, quantos são os antros do pecado, ou melhor, quantas são as almas pecadoras.  Ah, meu pobre Redentor! Continuar lendo

O PECADOR AFLIGE O CORAÇÃO DE DEUS

pecadorExacerbavit Dominum peccator: secundum multitudinem irae suae non quaeret ― “O pecador irritou ao Senhor: não se importa da grandeza de sua indignação” (Ps. 9, 24).

Sumário. Não há dissabor maior do que ver-se pago com ingratidão por uma pessoa amada e beneficiada. Daí infere quanto deve estar amargurado o Coração sensibilíssimo de Jesus, que, não obstante os imensos e contínuos benefícios concedidos aos homens, é tão vilmente ultrajado pela maior parte deles, especialmente neste tempo de carnaval. Jesus não pode morrer; mas, se o pudesse, havia de morrer só de tristeza. Procuremos nós ao menos desagravá-Lo um pouco com os nossos obséquios.

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O pecador injuria a Deus, desonra-O e por isso amargura-O sumamente. Não há dissabor mais sensível do que ver-se pago com ingratidão por uma pessoa amada e beneficiada. A quem ofende o pecador? Injuria um Deus, que o criou e amou a ponto de dar por amor dele o sangue e a vida. Cometendo um pecado mortal, bane esse Deus de seu coração.

Que mágoa não sentirias, se recebesses injúria grave de uma pessoa a quem tivesses feito bem? É esta a mágoa que causaste a teu Deus, que quis morrer para te salvar. Com razão o Senhor convida o céu e a terra, para de alguma sorte compartilharem com ele a dor que lhe causa a ingratidão dos pecadores: Ouvi, céus, e tu, ó terra, escuta: Criei uns filhos e engrandeci-os; porém, eles me desprezaram. ― Ipsi autem spreverunt me (1). ― Numa palavra, os pecadores, com o pecado, afligem o coração de Deus: Exacerbavit Dominum peccator. Deus não está sujeito à dor, mas, se a pudesse sofrer, um só pecado mortal bastaria para O fazer morrer de tristeza, porque Lhe causaria uma tristeza infinita. Assim, o pecado, no dizer de São Bernardo, por sua natureza é o destruidor de Deus: Peccatum, quantum in se est, Deum perimit.

Quando o homem comete um pecado mortal, dá, por assim dizer, veneno a Deus, faz o que está em si, para tirar-lhe a vida. Segundo a expressão de São Paulo, renova de certo modo a crucifixão e as ignomínias de Jesus e calca-O aos pés, pois que despreza tudo o que Jesus Cristo fez e sofreu para tirar o pecado do mundo: Qui filium Dei conculcaverit (2). Eis porque a vida do Redentor foi tão amargurada e penosa: tinha sempre diante dos olhos os nossos pecados. Continuar lendo

DOMINGO DA SEXAGÉSIMA: A PARÁBOLA DO SEMEADOR E A PALAVRA DIVINA

semeadorExiit qui seminat seminare semen suum — “Saiu o que semeia a semear a sua semente” (Luc. 8, 5).

Sumário. Irmão meu, o Senhor semeia continuamente em tua alma a boa semente de sua palavra. Se não produzir o seu fruto, examina se por ventura há em ti algum dos impedimentos indicados no Evangelho. Examina sobretudo se há em ti apego às riquezas, às dignidades, aos prazeres, ou à outra criatura qualquer; pois que são estes os espinhos que não somente fazem perder o fruto da palavra de Deus, mas afinal muitas vezes impedem que Deus ainda fale à alma.

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I. Refere São Lucas que, estando certo dia numerosa multidão de povo reunida ao redor de Jesus, este propôs a parábola do semeador, cuja semente caiu parte junto ao caminho, outra sobre pedregulho, outra entre espinhos, outra finalmente em terra boa. Perguntado depois pelos discípulos, o divino Redentor mesmo deu a seguinte interpretação: “A semente”, disse, “é a palavra de Deus. Os que estão à borda do caminho, são aqueles que a ouvem, mas depois vem o diabo e tira a palavra do coração deles, para que não se salvem crendo. Quanto aos que estão sobre pedra, são os que recebem com gosto a palavra, quando a ouviram; mas eles não têm raízes, porque até certo ponto crêem, e no tempo da tentação voltam atrás. A semente que caiu entre espinhos, estes são os que a ouviram, porém, indo por diante, ficam sufocados pelos cuidados e pelas riquezas e deleites desta vida, e não dão fruto: Suffocantur, et non referunt fructum.

Observa São Gregório que, sendo o Evangelho de hoje interpretado por Jesus mesmo, não precisa de outra explicação; mas é digno de nossa mais atenta consideração. — Considera, pois, aos pés de Jesus Cristo, se porventura se ache em ti algum dos três impedimentos notados na parábola que te possa privar do fruto da palavra divina: Aliud cecidit secus viam — “Parte caiu junto ao caminho”. Tens porventura o espírito dissipado e qual caminho público aberto a todos os pensamentos?… Aliud cecidit supra petram — “Outra parte caiu sobre o pedregulho”. Estará por ventura o teu coração endurecido como uma pedra em conseqüência de algum vício ou tibieza habitual?… Aliud cecidit inter spinas — “Outra parte caiu entre espinhos”. Examina sobretudo se tens apego às riquezas, às dignidades e aos prazeres terrestres, que são como espinhos, que fazem perder o fruto da palavra de Deus e muitas vezes são a causa de Deus não falar mais às almas, porque vê que suas palavras se perdem.

II. Continuando o Senhor a interpretar a última parte da sua parábola, acrescenta: “A semente que caiu em boa terra, estes são os que, ouvindo a palavra com coração bom e perfeito, a retém, e dão fruto pela paciência.” Nota aqui estas últimas palavras: Fructum offerunt in patientia — “Eles dão fruto pela paciência”. Elas significam que não nos devemos deixar enganar pelo demônio, com a pretensão de fazer tudo ao mesmo tempo, porquanto, como avisava São Filipe Neri: A obra da santificação não é obra de um só dia. Numa palavra, para não nos apartar da parábola, quem quiser colher frutos maduros, deve, como o lavrador, esperar pacientemente o tempo da colheita. Continuar lendo