Quão grande seja a dignidade da casta união conjugal, podemos principalmente reconhecê-lo, Veneráveis Irmãos, pelo fato de Cristo, Nosso Senhor, Filho do Pai Eterno, tendo tornado a carne do homem decaído, não só ter incluído, de forma particular, o matrimônio — princípio e fundamento da sociedade doméstica e até de toda a sociedade humana — naquele desígnio de amor por que realizou a universal restauração do gênero humano; mas, depois de o ter reintegrado na pureza primitiva de sua divina instituição, tê-lo elevado à dignidade de verdadeiro e “grande” (Ef 5, 32) sacramento da Nova Lei, confiando, por isso, toda a sua disciplina e cuidado à Igreja, Sua Esposa.
Para que, todavia, esta renovação do matrimônio produza, em todos os povos do mundo inteiro e de todos os tempos, os seus desejados frutos, é preciso, primeiro, que as inteligências humanas se esclareçam acerca da verdadeira doutrina de Cristo a respeito do matrimônio; e convém ainda que os esposos cristãos, fortificada a fraqueza da sua vontade pela graça interior de Deus, façam concordar todo o seu modo de pensar e de proceder com essa puríssima lei de Cristo, pela qual assegurarão a si próprios e à sua família a verdadeira felicidade a paz.
Mas, ao contrário, quando desta Sé Apostólica, como de um observatório, olhamos à nossa volta, verificamos na maior parte dos homens, com o esquecimento desta obra divina de restauração, a ignorância total da altíssima santidade do matrimônio cristão. Vós o verificais, tão bem como Nós, Veneráveis Irmãos, e o deplorais conosco. Desconhecem essa santidade, ou a negam impudentemente ou, ainda, apoiando-se nos princípios falsos de uma moralidade nova e absolutamente perversa, a calcam aos pés. Esses erros perniciosíssimos e esses costumes depravados começaram a espalhar-se até entre os fiéis e pouco a pouco, de dia para dia, tendem a insinuar-se no meio deles; por isso, em razão da Nossa missão de Vigário de Cristo na terra, de Supremo Pastor e Mestre, julgamos que Nos compete levantar a Nossa voz Apostólica para afastarmos dos pascigos envenenados as ovelhas que Nos foram confiadas, e, tanto quanto em Nós caiba, conservá-las imunes.
Divisão da Encíclica
Resolvemos, pois, falar-vos, Veneráveis Irmãos, e, por meio de vós, a toda a Igreja de Cristo e até a todo o gênero humano, a respeito da natureza do matrimônio cristão, da sua dignidade, das vantagens a benefícios que dele dimanam para a família e para a própria sociedade humana; dos gravíssimos erros contrários a esta parte da doutrina evangélica, dos vícios contrários à vida conjugal, e, enfim, dos principais remédios que é mister empregar, seguindo os passos do Nosso predecessor de feliz memória, Leão XIII, cuja Carta EncíclicaArcanum(Enc. Arcanum divinae sapientiae), acerca do matrimônio cristão, publicada há 50 anos, fazemos Nossa e confirmamos pela presente Encíclica; e declaramos que, se expomos mais largamente alguns pontos de acordo com as condições e necessidades da nossa época, aquela Encíclica não só não se tornou obsoleta mas conserva seu pleno vigor.
E, para tomarmos como ponto de partida aquela mesma Encíclica, que é quase toda consagrada a provar a divina instituição do matrimônio, a sua dignidade de sacramento e a sua inquebrantável perpetuidade, lembremos em primeiro lugar o fundamento que permanece intacto e inviolável: o matrimônio não foi instituído nem restaurado pelos homens, mas por Deus; não foi pelos homens, mas pelo restaurador da própria natureza, Cristo Nosso Senhor, que o matrimônio foi resguardado por lei, confirmado e elevado; por isso essas leis não podem depender em nada das vontades humanas nem sujeitar-se a nenhuma convenção contrária dos próprios esposos. É esta a doutrina da Sagrada Escritura (Gn 1, 27-28; 2, 22-23; Mt 19, 3 e seg.; Ef 5, 23 e seg.); é esta a constante e universal tradição da Igreja, esta a definição solene do Sagrado Concílio de Trento, que, tomando as próprias palavras da Sagrada Escritura, proclama e confirma que a perpetuidade e a indissolubilidade do matrimônio, bem como a sua unidade e imutabilidade, provêm de Deus, seu autor (Conc. Trid. sess. 24).
Mas, embora o matrimônio por sua própria natureza seja de instituição divina, também a vontade humana tem nele a sua parte, e parte notabilíssima; pois que, enquanto é a união conjugal de determinado homem e de determinada mulher, não nasce senão do livre consentimento de cada um dos esposos: este ato livre da vontade por que cada uma das partes entrega e recebe o direito próprio do matrimônio (Cf. Cod. Iur. Can. c. 1081, § 2) é tão necessário para constituir um verdadeiro matrimônio, que nenhum poder humano o pode suprir (Cf. Cod. Iur. Can. c. 1081, § 1). Esta liberdade, todavia, diz respeito a um ponto somente, que é o de saber se os contraentes efetivamente querem ou não contrair matrimônio e se o querem com tal pessoa; mas a natureza do matrimônio está absolutamente subtraída à liberdade do homem, de modo que, desde que alguém o tenha contraído, se encontra sujeito às suas leis divinas e às suas propriedades essenciais. O Doutor Angélico, dissertando acerca da fidelidade conjugal e da prole, diz: “No matrimônio estas coisas derivam do próprio contrato conjugal, de tal modo que, se no consentimento que produz o matrimônio se formulasse uma condição que lhe fosse contrária, não haveria verdadeiro matrimônio” (Sum. Theol. part. III, Suplem., q. XLIX, art. 3.º). Continuar lendo →
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